Cenário político brasileiro desperta apreensão na Feira do Livro de Frankfurt

Nomes da literatura nacional e internacional falam sobre suas preocupações com uma ameaça para a democracia do Brasil em Frankfurt

Por Diogo Guedes, do Jornal do Commercio

O escritor carioca João Paulo Cuenca foi um dos nomes brasileiros na Feira de Frankfurt (Zô Guimarães/Folhapress)

Desde a sua abertura, a Feira do Livro de Frankfurt tem tratado de evidenciar o papel também humanitário e político da literatura. A temática dos 70 anos da Declaração dos Direitos Humanos já levou para os discursos a preocupação com a prisão de jornalistas e escritores na Turquia e também com o crescimento do partido de extrema-direita da Alemanha, o AfD. Nas mesas e conversas com autores brasileiros, não por acaso, um dos principais assuntos são as eleições nacionais, com a possibilidade de um candidato de extrema-direita, conhecido internacionalmente por declarações que atacam mulheres, homossexuais e negros, ganhar o pleito.

Ao longo de ontem, os três escritores brasileiros convidados para Frankfurt participaram de mesas de debates no palco principal do evento, o Frankfurt Pavilion, também conhecido como a Agora. A autora paulista Bianca Santana subiu ao palco com uma camisa com um grande “#EleNão” escrito. Na mesa sobre literatura, politica e comprometimento, o escritor carioca João Paulo Cuenca também falou diretamente do assunto, temendo até pela liberdade de expressão caso Jair Bolsonaro seja eleito. A escritora argentina Gabriela Cabezón chegou a chamar o candidato de um “nazista tropical”.

Autor de obras como O Único Final Feliz para uma História de Amor é um Acidente e de Descobri que Estava Morto, Cuenca participou de uma conversa (atropela, por conta do curto tempo e dos muitos participantes) com a escritora argentina Carla Maliandi, o editor e filósofo mexicano Jaime Labastida e a autora chilena Vivian Lavín. “É impossível ser objetivo, e ser um artista objetivo mais ainda. Para mim, a literatura é uma máquina de destruição de certezas, uma máquina para questionar. Quando alguém como Bolsonaro surge, temos que falar dele, afinal, uma das coisas que a literatura busca destruir são os poderes”, apontou o brasileiro.

Vivian lembrou que a constituição chilena em vigor ainda foi a promulgada pelo ditador Augusto Pinochet em 1980. “Nela não estão todos os direitos fundamentais. É por isso que digo que vivemos não em uma democracia, mas em uma pós-ditadura”, aponta. Carla destacou como a atual geração argentina vem tentando escrever as histórias dos seus pais e, portanto, da ditadura do seu país: “Acredito mais nessa ideia de político dentro da literatura do que o compromisso engajado da geração dos anos 1970″.

Cuenca ainda comentou que gosta de ter a liberdade de escrever sobre a realidade ou não. O Único Final Feliz…, por exemplo, “é um delírio sobre o Japão”. Descobri que Estava Mortoparte de um evento real, o dia em que o escritor descobriu por acaso que havia sido dado como morto pelo estado brasileiro: “É um livro sobre a corrupção brasileira, a morte de negros na periferia”. “Estamos em um momento no Brasil em que até a liberdade de expressão pode ficar ameaçada”, apontou.

Depois da mesa, ao JC, Cuenca ressaltou que seu papel como escritor era denunciar os riscos que o Brasil corre. Em 2013, o escritor esteve em Frankfurt, com uma cerimônia aberta com o então vice-presidente Michel Temer após os protestos de julho daquele ano. “Eu nunca imaginaria que a tensão política terminaria assim. A resposta do PT aos protestos naquela época abriu espaço para que a direita ocupasse às ruas. O que vivemos hoje, de forma bem resumida, também é fruto disso”, lamentou.

A política também foi assunto preponderante no encontro de autoras da literatura latino-americana, com as já citadas Bianca e Gabriela e a escritora uruguaia Mercedes Rosende. A mesa trouxe três olhares sobre como é produzir literatura como uma mulher na América Latina. “É impossível para mim escrever sem lembrar que sou uma mulher negra. Eu escrevo em casa, cercada pelos meus três filhos brincando. Então, mesmo que eu tentasse, seria impossível. Uma vez, desci ao parquinho do prédio de classe média onde moro com meus filhos e fiquei escrevendo no computador. Uma mulher chegou para perguntar em que apartamento eu trabalhava. Achou que eu era uma empregada doméstica. Então, a realidade à minha volta sempre me recorda também que sou uma mulher negra”, argumentou Bianca.

A autora de Quando me Descobri Negra, além de falar de Bolsonaro, citou o assassinato de Marielle Franco, ainda sem solução. “Todos ouviram falar da morte dela, então é importante dizer que ela foi uma sementa, e que três mulheres que trabalhavam no gabinete com ela foram eleitas deputadas. Existem vitórias políticas, mas há uma preocupação com os riscos à nossa vida”, apontou a escritora.

NOVÍSSIMOS

A conversa com Geovani Martins, autor do celebrado livro de contos O Sol na Cabeça, com traduções vendidas para dez países e que vai virar filme pelas mãos de Karim Ainouz, teve participação de outros quatro escritores: Ariana Harwicz (Argentina), Antonio Ortuño (México), Pilar Quintana (Colômbia) e Mike Wilson (Chile). “Eu fiz o livro como um projeto de tentar viver de literatura, mas não imaginaria esse resultado”, conta Geovani. “Por ser um autor negro, da favela, a minha única chance de fazer sucesso era criar um livro acima da média. A recepção foi ótima, o livro saiu com uma tiragem grande para o Brasil, 15 mil exemplares, e já está na quinta reimpressão.”

Na conversa, Geovani ainda comemorou o fato do livro ter chegado a pessoas que não costumam ler tanto. “Já vieram falar comigo dizendo que foi a primeira obra que eles leram”, revelou. Além disso, comentou uma escolha intencional: em nenhum momento do livro ele diz que seus personagens são negros. “E todos que leem comentam que meus personagens são negros. As pessoas sabem que as situações que meus personagens passam no livro, como a de ser parado sem nenhum motivo pela polícia, acontece com negros o tempo todo. O leitor que completa a obra porque, mesmo que não revele explicitamente, ele sabe que a polícia no Brasil atua de forma racista.”

Após a mesa, Geovani comentou que já participou de um encontro com os editores internacionais de sua obra – que pode ganhar novas traduções em breve. E, até por conta da temática da Feira de Frankfurt, há uma preocupação com o cenário político do Brasil. “É um dos maiores países do mundo, que fica sempre em evidência, ainda mais quando a democracia está ameaçada. Com essa onda conversadora no mundo, todos estão ainda mais interessados”, afirmou.

O repórter viajou a convite do Consulado Geral da Alemanha no Recife

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