Decisão do STF abate o racismo religioso

Quem vocifera contra cultos de matriz africana busca ditar quando e onde direitos da população negra podem ser exercidos

por Thiago Amparo no Folha de São Paulo

Cerimônia em homenagem a Yemanjá em Salvador – Lucio Tavora:AFP

Dia 28 de março de 2019. STF declara constitucional o sacrifício ritual de animais em cultos de religiões de matriz africana. O fundamento: resguardar liberdade religiosa. A condição: prática deve ser feita sem crueldade. O recurso à mais alta corte foi movido pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul.

Em tempos de espetacularização do debate, visões antagônicas sobre a questão se seguiram à decisão do STF. Algumas delas tragicômicas; e tantas outras abertamente discriminatórias. Poucas, no entanto, conseguiram enxergar além da fumaça da polarização.

Houve de tudo. Juristas compararam rituais de religiões de matriz africana a vaquejadas e brigas de galo, ambas práticas declaradas inconstitucionais pelo STF. Uma defensora dos direitos dos animais chegou a afirmar que a partir de agora a degola de filhotes de cães estaria liberada e jornais ilustraram a notícia da decisão do STF com fotos de cãezinhos.

Quando debate se torna espetáculo, falsos conflitos são engendrados.

O STF não trivializou crueldade contra animais. Pelo contrário. Foi justamente em razão da vedação constitucional à crueldade contra animais que o tribunal não igualou este caso aos de vaquejada e briga de galo. Afirmar o contrário é tratar o caso no STF como se dissesse o oposto do que diz.

Nas religiões de matriz africana, animais rotineiramente consumidos por grande parte da população (por exemplo, galinha e pato) são sacrificados via de regra sem crueldade e muitas vezes para o consumo.

Animais domésticos como cachorro e gato não são sacrificados nestas religiões. Nos outros dois casos, diversos laudos técnicos mostraram ao STF que crueldades contra animais —por exemplo “fraturas nas patas e rabo, ruptura de ligamentos e vasos sanguíneos, eventual arrancamento do rabo e comprometimento da medula óssea”— não somente são recorrentes, mas intrínsecas a práticas como vaquejadas e brigas de galo. Este não é o caso das religiões de matriz africana.

O argumento pela igualdade moral do sofrimento de humanos e animais, como o fazem Peter Singer e outros, deve ser respeitado e é sério. O STF nada fez para minimizá-lo. No entanto, focar somente este debate nas religiões de matriz africana é contribuir para demonização das mesmas. O Movimento Afro Vegano (MAV), entre outros, notou justamente este ponto. Continuam a ser crime os maus tratos a animais, sob pena detenção e multa. STF não mudou essa realidade.

Racismo se manifesta quando o mero reconhecimento de direitos em tese a todos e todas garantidos provoca indignação. Indignando-se, aqueles que ora vociferam contra liberdade religiosa em cultos de matriz africana reforçam um dos alicerces do racismo à brasileira: a arrogância de ditar quando, como, e onde direitos podem ser exercidos pela população negra.

A Folha noticiou em janeiro deste ano que os casos de intolerância religiosa, em sua maioria contra religiões de matriz africana, aumentaram 171% no período eleitoral entre agosto e outubro do ano passado.

Não é só de ataques físicos que o racismo é feito. A jocosidade depreciativa a que estas religiões são reduzidas nos discursos jurídico e social como cultos primitivos de magia negra, em si, expressa preconceito.

Na sustentação oral no julgamento deste caso, o advogado Hédio Silva Jr. chegou à raiz da questão. “Não vejo instituições jurídicas ingressarem com medida judicial para evitar a chacina de jovens negros, mortos como cães na periferia. Mas parece que a vida da galinha da macumba vale mais do que a vida de milhares de jovens negros,” ele disse.

Num país onde o arquivamento de casos envolvendo mortes de jovens negros pelos Ministérios Públicos estaduais é a regra, e a elucidação de crimes dolosos contra a vida, a exceção (cerca de 10%), percebe-se que as instituições exercem religiosamente o livre arbítrio de decidir por quem se mover. E o fazem de forma racialmente seletiva.

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Thiago Amparo

Advogado, é professor de políticas de diversidade na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos humanos e discriminação.

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