Degredados e racismo, por Fernando Molica

Essa história de atribuir nossas mazelas ao fato de que havia degredados entre os primeiros colonizadores resvala pesado no racismo. Mais, evoca uma espécie de determinismo genético (“Pau que nasce torto cresce torto”) que justifica ataques a determinados grupos e, no limite, colabora para fenômenos como tentativas de extermínio daqueles apontados como degenerados ou impuros.

Por Fernando Molica Do GGN

Falar em degredados é relatar apenas uma parte do preconceito tantas vezes cochichado. A justificativa para o nosso atraso tantas vezes apontada pelos arautos da simplificação e da eugenia costuma também citar a presença de negros e índios entre nossos antepassados. Quantas vezes não ouvimos que estávamos destinados ao fracasso por conta do cruzamento – a palavra usada é essa, que remete ao sexo entre animais – entre portugueses/degredados, negros e índios?

Esse tipo de estupidez costuma ganhar corpo principalmente entre aqueles que, por razões genéticas e/ou culturais, não se consideram fruto dos cruzamentos por eles classificados de malditos. Ou que, pelo menos, acham que, por conta do estudo e/ou da religião, conseguiram purgar as marcas da herança transmitida pelos antepassados, livraram-se do pecado original da colonização e das consequências da fornicação desmedida.

O viés racista fica ainda mais evidente ao se, com frequência, associar o lamento pela presença lusitana ao suspiro pelo fracasso das tentativas de colonização pela Holanda e França, pátrias de povos mais desenvolvidos – e brancos – que os portugueses. Um pensamento que, como já ressaltado por outros, não leva em conta as atrocidades cometidas por holandeses na África do Sul nem a barbárie promovida por franceses na Argélia e em outras colônias.

Na América, os cristãos ingleses não vacilaram em quase exterminar índios e em escravizar africanos. A Austrália, como frisou Fernando Brito, foi formada não por meia dúzia, mas por milhares de degredados. Por esta lógica, alemães e italianos deveriam ser isolados, afinal, muitos deles são (somos) descendentes de nazistas e fascistas.

A insistência no princípio do pecado original ofende a todos nós, herdeiros de portugueses, negros, índios, judeus, árabes, italianos, espanhóis, franceses, japoneses, coreanos, holandeses, poloneses, alemães. Desqualifica os que estavam aqui antes dos portugueses e todos aqueles que, escravizados ou em busca de uma vida melhor, chegaram depois.

Falar em herança maldita joga toda uma população contra a parede, faz como que todos sejamos suspeitos, necessitados de limpeza, purgação ou exorcismo. Foi assim, em nome de algum deus ou de uma suposta superioridade genética, que muita gente ao longo da história foi levada para a fogueira e para as câmaras de gás.

+ sobre o tema

O racismo inverso existe e precisa ser combatido

Mais uma vez falando sobre racismo, mas dessa vez...

Está na moda ser preto, desde que você não seja preto

É bem comum encontrar nas redes sociais algumas pessoas...

para lembrar

O racismo inverso existe e precisa ser combatido

Mais uma vez falando sobre racismo, mas dessa vez...

Está na moda ser preto, desde que você não seja preto

É bem comum encontrar nas redes sociais algumas pessoas...
spot_imgspot_img

O que emergirá do tribalismo do ressentimento?

O ressentimento tem encontrado terras férteis em ambientes marcados por mobilidade social limitada, disputas por reconhecimento e pela progressiva assimilação, pela sociedade, das diferenças...

Experts em ressignificação

Estou cada vez mais convencida de que pessoas negras são "experts em ressignificação". A especialização foi se dando ao longo dos séculos (literalmente) de...

Justiça para Herus, executado em festa junina no Rio

Não há razão alguma em segurança pública para que Herus Guimarães Mendes, um office boy de 23 anos, pai de uma criança de dois...