Democracia deve aos brasileiros a punição dos golpistas

O arbítrio, mais uma vez, confirma que não tem freios

Coube a um par de autoridades expressar com clareza o tamanho da ameaça, ora revelada, que rondou a democracia brasileira nos meses seguintes à eleição de 2022.

— Estivemos mais próximos do que imaginávamos do inimaginável — disparou um ainda perplexo presidente do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, horas depois da prisão de quatro militares e um policial federal por envolvimento na trama golpista.

Titular da Secretaria de Comunicação do governo, Paulo Pimenta, em outro momento, completou o diagnóstico:

— Só não tivemos uma tragédia por um detalhe.

Homens treinados com dinheiro público para zelar pela segurança nacional e respeitar a Constituição arquitetaram, despudoradamente, plano para eliminar o presidente e o vice recém-eleitos, além da principal autoridade eleitoral do país, na intenção de manter no comando da nação o candidato derrotado nas urnas, um autocrata em construção. Reuniram-se na casa de uma autoridade, imprimiram documentos no Palácio do Planalto, trocaram mensagens em aparelhos móveis, monitoraram o presidente do TSE e o tocaiaram.

A PF concluiu ontem, após quase dois anos de trabalho, o inquérito sobre crimes imputados à cúpula do governo militarizado que não pretendia deixar o poder. O calhamaço pede o indiciamento de 37 pessoas, incluindo a tríade mais poderosa do Executivo de 2019 a 2022: Jair Bolsonaro, ex-presidente da República, e os generais Braga Netto, ex-ministro da Defesa e Casa Civil, candidato à vice na chapa derrotada, e Augusto Heleno, ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional. Muitos deles foram citados no relatório final da comissão parlamentar que investigou os ataques às sedes dos três Poderes no 8 de janeiro de 2023, uma semana após a posse de Luiz Inácio Lula da Silva para o terceiro mandato.

Caberá à Procuradoria-Geral da República denunciar (ou não) os indivíduos que a PF indiciou por abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado e organização criminosa. Se tornados réus, todos deverão receber julgamento justo, um pilar da democracia que sempre desprezaram. O golpismo sempre habitou o governo Bolsonaro. Os ataques às instituições antecederam a posse, em 2019. Somente muita convicção na impunidade e na perpetuação no poder explica o arsenal mobilizado para, primeiro, tentar vencer e, depois, usurpar o resultado das urnas.

Do segundo semestre de 2022 até o início de 2023, o ex-presidente e aliados fizeram de tudo. Com o aval do Congresso Nacional, aprovaram bilhões em recursos públicos para comprar popularidade entre pobres, taxistas, caminhoneiros. Desoneraram até o ICMS da gasolina, levantando prejuízos os cofres estaduais, para adular a classe média. Apontaram fraude nas urnas eletrônicas em reunião com diplomatas estrangeiros. Usaram a Polícia Rodoviária Federal para tentar impedir eleitores de Lula de chegar a seções de votação no Nordeste.

Perderam no voto e passaram a articular o golpe que impediria a posse do adversário eleito legitimamente. A trama que a PF desvendou passa por mobilização popular com caminhões obstruindo rodovias e acampamentos diante de quartéis. Houve veículos incendiados na capital federal no dia da diplomação da chapa vencedora no TSE; um caminhão-tanque que seria explodido perto do aeroporto de Brasília na noite de Natal. E a invasão do Planalto, do STF e do Congresso Nacional, que já resultou na condenação de centenas de executores.

Mais que a Justiça, é a democracia que deve aos brasileiros a identificação e a punição dos que incitaram, organizaram e financiaram o golpismo bolsonarista. Passo importante foi dado ontem, com a finalização do inquérito que aponta os crimes de quem se beneficiaria da ruptura institucional. O que nem todos esperavam era a revelação de um enredo tão sórdido, sobre um punhado de agentes públicos dispostos a matar autoridades como assassinos de aluguel. Quatro militares, entre eles um general, e um policial federal foram presos por estruturar com capital humano, recursos e equipamentos públicos o plano de violência letal contra Lula, Alckmin e Moraes, por envenenamento ou arma de fogo.

A semelhança com o modus operandi da indústria da morte que, seis anos atrás, ceifou a vida da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes não é coincidência. No relatório que amparou a operação da última terça-feira, a PF revelou que a investigação do caso Marielle foi escrutinada para auxiliar no anonimato dos envolvidos no plano golpista. Os militares da ação Copa 2022 repetiram métodos que o Brasil conheceu pela voz de Ronnie Lessa, o policial reformado contratado para execução, agora condenado a 78 anos de prisão.

Cuidaram de comprar telefones celulares com CPF de inocentes. Planejaram cuidadosamente campana e circulação para não ser identificados. Estudaram armas e monitoraram percurso e esquema de segurança das potenciais vítimas. Agiram como integrantes de um escritório do crime plantado em Brasília, no coração do poder central. Cogitaram agir mesmo sob o risco de eliminar companheiros de farda encarregados da proteção das autoridades. O arbítrio, mais uma vez, confirma que não tem freios. A limitá-lo, somente uma democracia forte.

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