Demonização de Cosme e Damião por evangélicos dá corda para intolerância religiosa

Festa típica de religiões afrobrasileiras, com distribuição de doces, é alvo de igrejas como a Universal

O filho de Jaciele Souza, 30, chegou em casa achando que tinha feito besteira. “Ele contou que a pregação na igreja foi contra os doces. ‘Mãe, o pastor disse que não pode consumir, não, que as crianças ficam doentes se comerem’”, a empregada doméstica reproduz o que ouviu do pré-adolescente de 11 anos.

Ele também contou que a mãe de uma amiga, quando a viu com o saquinho cheio de balas, jogou tudo no lixo. Era evangélica.

Católica de batismo que quando criança ia com a mãe a uma Assembleia de Deus, Jaciele hoje não tem religião específica. Gosta de várias.

Já o filho vai a reuniões da Força Jovem Universal em Paraisópolis (zona sul de São Paulo), e foi numa delas que ouviu a sentença contra as guloseimas tradicionalmente distribuídas numa das festas mais populares de algumas religiões de matriz africana, como a umbanda e o candomblé.

Longe de isolados, relatos como o de Jaciele ajudam a escrever um capítulo da intolerância religiosa contra religiões afrobrasileiras: a aversão ao Dia de Cosme e Damião, celebrado no domingo (26), por católicos, ou na segunda (27), por umbandistas e candomblecistas.

A data está na memória afetiva de muitos brasileiros por causa da partilha de sacos cheios de doces como pé de moleque, pirulito e paçoca.

A encrenca maior é com a celebração das crenças afro, dedicada a entidades infantis chamadas de erês. Para contingentes evangélicos, manifestações demoníacas.

Marcos Lima, que é pai de santo em Duque de Caxias (RJ), conta que esse era um dos festejos mais adorados em seu terreiro. Virava um formigueiro, tantas eram as pessoas da vizinhança que atraía. “Hoje é praticamente restrita aos membros da casa, e não damos mais doces”, diz. Não vê por quê.

Os 500 saquinhos de gulodice que entregavam caíram para zero. “Nos últimos dez anos, fomos diminuindo. Não são mais aceitos pelas pessoas. Elas simplesmente não vêm à festa. E, se formos distribuir na rua, as mães proíbem as crianças de pegar.”

São mulheres que, na última década, engrossaram a escalada evangélica no Brasil. Não é regra que igrejas dessa fé preguem contra o Cosme e Damião. Mas é praxe.

“Há uma campanha de demonização que corre nas redes sociais todos os anos”, afirma Lima. Fala de vídeos como este que recrimina, em melodia infantilizada, quem topa a oferta açucarada: “Doces que vêm de graça/ oferendas e promessas/ já aceitei Jesus/ e não caio nessa”.

A Universal do Reino de Deus, igreja frequentada pelo filho de Jaciele, já publicou em seu site um texto para sustentar por que o dia merece o desprezo de seus fiéis. “É importante saber o que está realmente por trás de tal celebração”, afirma o artigo.

Vamos por partes: Cosme e Damião foram irmãos nascidos na região da península Arábica por volta de 260 d.C. Gêmeos, médicos e cristãos, foram perseguidos pelo imperador romano da vez. O império, em sua sanha contra aquela nova fé, lhes reservou a tortura e a degola. A Igreja Católica fez deles santos.

Corta para a escravidão no Brasil. A sobrevivência de crenças africanas só foi possível porque negros escravizados passaram a associar deuses que cultivavam, os orixás, a santos católicos. Daí o sincretismo religioso que se espraiou pelo país.

A mitologia de algumas religiões da África fala dos ibejis, gêmeos dos orixás Iansã e Xangô. Há variações na ascendência, mas a essência é a mesma: são entidades que representam a pureza e a bondade. Como a infância. No tradutor para o “catoliquês”, viraram Cosme e Damião.

“O fato é que tanto a idolatria quanto a feitiçaria, o ocultismo, o culto aos mortos e as práticas semelhantes são condenadas por Deus, e todos aqueles que as realizam atraem maldição para si e para os seus descendentes”, afirmou a Universal em 2018.

Naquele ano, a igreja promoveu em seus templos, bem no 27 de setembro, o “domingo da bênção para os filhos”. Dizia-se interessada em protegê-los “de toda influência maligna que ronda o fim do mês de setembro”.

Em 2020, o culto se repetiu. “Nossos filhos estão sendo expostos a um mundo que é contra Deus. Tudo o que eles consomem combate ao que você tem ensinado a eles, aos princípios de fé, justiça, de certo e errado”, disse naquele mesmo setembro o bispo Renato Cardoso, casado com uma filha do líder da Universal, Edir Macedo, no principal endereço da denominação, o Templo de Salomão.

Pedro Luis Barreto Litwinczuk, o Pedrão, pastor da Comunidade Batista do Rio, vê motivos para fiéis “não darem ibope” aos irmãos médicos. Foram “pessoas fantásticas, e a gente não renega o valor das pessoas valiosas em seu tempo”, ok.

O evangélico, contudo, “tem por hábito ter somente a pessoa de Jesus Cristo”, diz. A rejeição aos santos que povoam o catolicismo vem daí, inclusive.

“A preocupação é com a educação dos filhos —que eles aprendam, digamos, algo que seria contra o costume da Bíblia. Isso que é o grande negócio.”

E a concorrência, segundo Pedrão, é pesada. “A garotada vê um monte de gente pegando doce. Como você vai falar para a criança cristã de cinco, seis anos que ela não pode? Demonizam para tentar proibir as crianças de participar disso.”

A Universal é uma entre tantas igrejas antipáticas ao Cosme e Damião. Denisson D’Angiles e Kelly D’Angiles, pai e mãe de santo do Centro Espiritualista de Umbanda Estrela Guia, colecionam episódios de discriminação na data.

Alguns são sutis. Aconteceu em 2020, quando a casa na zona sul paulistana montou um drive thru para oferecer doces no meio da pandemia da Covid-19. “Nesse dia, estacionaram um carro bem na porta [da garagem]. O dono simplesmente desapareceu.”

Colado na traseira do veículo, um adesivo do peixe cristão, central para a simbologia evangélica. Como a Estrela Guia já foi alvo de intolerância religiosa no passado, eles desconfiam de uma ação deliberada para melar a comemoração.

Seria um repeteco do ano em que, na época de Cosme e Damião, alguém retirou de propósito um cano d’água do imóvel. O vandalismo, que para Denisson partiu de vizinhos desgostosos com a casa de umbanda, por pouco não o fez cancelar a festa.

“Dependíamos de um banheiro só, imagina a situação constrangedora que seria”, diz o líder religioso, que resolveu a situação improvisando uma tubulação no dia.

Em 2018, a ordem para acabar com uma cerimômia que o centro organizou para 500 crianças de uma comunidade no extremo sul da cidade teria partido de um chefe do tráfico local. “Ele era evangélico e disse que não podia.” Acabou deixando de última hora, “numa atitude de benevolência momentânea”, conta o pai de santo.

O pastor batista Marco Davi Oliveira cresceu sem poder comer os doces ensacados nas tradicionais embalagens de papel branco com detalhes em verde e rosa. “Fugia e comia, mas me sentia meio culpado. Parecia estar cometendo um grande pecado”, conta.

Hoje até ri ao lembrar das estripulias da meninice evangélica, mas acha pouca graça no que define como “fundamentalismo religioso muito forte nas mentes das pessoas”.

“A gente tem que respeitar o sagrado do outro”, diz Nilza Valéria Zacarias, coordenadora da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito. Mas a demonização do alheio não vai passar num estalar de dedos, ela reconhece.

Para Zacarias, não tem jeito, o caminho é a educação: pastores deveriam aprender mais sobre cultura africana para “ajudar a desconstruir a ideia de que tudo relacionado à África é demonizado”.

Até porque, hoje, os negros estão muito mais presentes nas igrejas evangélicas do que nos terreiros. Seria importante não deixar o preconceito se sobrepor ao que “por muito tempo foi lugar de resistência para nós”, afirma a fiel da batista Nossa Igreja Brasileira.

Ela saca uma passagem do Evangelho de Mateus: “O que contamina o homem não é o que entra na boca, mas o que sai da boca, isso é o que contamina o homem”.

“Mal é o que eu digo, o que eu falo”, diz Zacarias. “O que entra é só o sabor adocicado que dá alegria tanto para crianças quanto para adultos.”

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