Desaparecidos assombram país mesmo após redemocratização

Chama a atenção que os casos cresçam simultaneamente à redução nos casos de letalidade violenta

Quando o presidente Lula assinou o decreto de reinstalação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, no início de julho, emergiu como prioridade na retomada dos trabalhos o cemitério clandestino conhecido como Vala de Perus. Na área, dentro do Cemitério Dom Bosco, Zona Oeste da capital paulista, foram encontrados, em 1990, 1.049 sacos com ossos humanos, resultado de uma reportagem iniciada dois anos antes por Caco Barcellos, da TV Globo. O jornalista investigava homicídios praticados por PMs, que resultaram no best-seller “Rota 66: a história da polícia que mata”. Encontrou laudos sobre corpos enviados ao IML pelo Dops, a polícia política do regime, com a letra “T”, de terrorista, escrita em vermelho. Partiu daí a confirmação de denúncias feitas, desde os anos 1970, por familiares de vítimas da ditadura militar.

O cemitério em Perus foi planejado para o sepultamento de indigentes. A vala clandestina não constava da planta original nem foi registrada. Também não havia anotação sobre corpos ali desovados. As ossadas eram de pessoas enterradas como indigentes, com nomes trocados e de vítimas do regime que acossou o Brasil de 1964 a 1985. Após mais de 800 análises, cinco desaparecidos políticos foram identificados: Dênis Casemiro, Frederico Eduardo Mayr, Flávio Carvalho Molina, Dimas Antônio Casemiro e Aluísio Palhano Ferreira.

Mais de três décadas depois, democracia reinstalada, pessoas desaparecidas ainda assombram o país. Em números crescentes. O Anuário Brasileiro da Segurança Pública, divulgado ontem, registrou aumento de 3,2% nos desaparecimentos: de 77.823 pessoas em 2022 para 80.317 no ano passado. Houve queda em apenas duas unidades da Federação: Amapá (-24,3%) e São Paulo (-9,3%). Em Amazonas (30,2%), Bahia (19,2%), Distrito Federal (10,2%), Mato Grosso (10,7%), Pará (30,1%), Paraíba (48%), Piauí (33,9%), Rio de Janeiro (10,7%), Rio Grande do Norte (10,4%) e Tocantins (10,1%), alta de dois dígitos. No Rio, o total saltou de 5.255 para 5.815; na Bahia, de 3.799 para 4.529.

Chama a atenção que os casos de desaparecimento cresçam simultaneamente à redução nos casos de letalidade violenta. A atual edição do Anuário apurou 46.328 mortes violentas intencionais, estatística que comporta homicídio doloso, latrocínio, lesão corporal seguida de morte, óbito de policiais civis e militares, morte decorrente de intervenção policial. A queda, na comparação com 2022, foi de 3,4%. É certo que nem todos os desaparecidos morreram, mas não está errado supor que a queda na letalidade violenta se relacione a desaparecimentos forçados, em que os assassinos enterram, incineram ou destroem os corpos das vítimas. A Vala de Perus é registro histórico; os cemitérios clandestinos que vez por outra aparecem nas bordas das metrópoles, evidências atuais.

“Ao menos desde a ditadura militar sabemos da existência de cemitérios clandestinos para a desova de corpos”, escreveram Samira Bueno, diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, e Beatriz Schroeder, graduanda em administração pública, em texto para o Anuário. “No período democrático, o descarte de corpos de pessoas executadas em valas clandestinas se manteve, embora as pesquisas sobre o tema sejam escassas. Essa prática foi incorporada principalmente por facções criminosas e milícias como forma de eliminar rivais sem chamar a atenção do Estado. Se não há corpo, não há crime, tampouco investigação.”

A diferença entre o número de pessoas desaparecidas e encontradas anualmente no Brasil — perto de 30 mil — demanda atenção, segundo as pesquisadoras. A classificação imprecisa pode esconder tráfico de pessoas, exploração sexual, assassinatos. Desde 2021, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo recebeu 549 denúncias de cemitérios, valas e covas clandestinos. Cecília Olliveira, do Instituto Fogo Cruzado, lembra que não são raras as descobertas de cemitérios clandestinos também na Região Metropolitana do Rio:

— Há desaparecimentos que nem sequer são comunicados, tamanho o medo. O problema é que ninguém liga. A questão não é levada a sério como deveria, especialmente porque não há como analisar dados de homicídios sem considerar os desaparecimentos. O cenário, tudo indica, é muito pior do que imaginamos.

Pablo Nunes, da Rede de Observatórios de Segurança, chama a atenção para casos não registrados de homicídios relacionados ao avanço das milícias e ao intercâmbio de práticas de morte entre os grupos civis armados. E destaca que o Brasil não assimilou recomendações da ONU de criar uma categoria jurídica para os desaparecimentos forçados. Com isso, uma estatística importante da segurança pública não é dimensionada.

— O descaso é grande — resume.

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