Desconstruindo preconceitos: a importância do ensino de história para a construção de uma nova cultura política

Num artigo chamado “O que e como ensinar”[2], Jaime Pinsky assinala que uma das tarefas centrais do professor de história é ajudar o aluno a compreender e a melhorar o mundo em que vive. Outro aspecto, não menos importante, seria promover entre os alunos “o bom e velho espírito crítico”. Para tanto, “o passado deve ser interrogado a partir de questões que nos inquietam no presente (caso, contrário, estudá-lo fica sem sentido)”, tendo como referência questões sociais e culturais, assim como problemáticas humanas que fazem parte de nossa vida social. Temas como desigualdades sociais, raciais, sexuais, diferenças culturais, problemas materiais e inquietações relacionadas a como interpretar o mundo, lidar com a morte, organizar a sociedade, estabelecer limites sociais, mudar esses limites, contestar a ordem, consolidar instituições, preservar tradições e realizar rupturas devem ser trabalhados constantemente em sala de aula.

Marco Antônio Machado Lima Pereira[1] via Guest Post para o Portal Geledes

Em linhas gerais, uma das estratégias mais importantes defendidas pelo autor refere-se à necessidade de:

a) capacitar os estudantes no sentido de perceberem a historicidade de conceitos como democracia e cidadania;

b) questionar ideias como inferioridade racial, cultural e moral;

c) “fazer com que os alunos não só reconheçam preconceitos, mas compreendam seu desenvolvimento e mecanismos de atuação, para poder criticá-los com bases e argumentos mais sólidos”;

d) “demonstrar com clareza certos usos e abusos da História, perpetrados por grupos políticos, nações e facções”;

e) “possibilitar a crítica a dogmatismos e verdades absolutas com base no reconhecimento da historicidade de situações e formas de pensamento”[3].

Gostaria de aproveitar este espaço para propor uma reflexão acerca do contexto político e social atual, marcado pelo crescimento da direita, da intolerância, do fascismo, da ignorância e da homofobia. Essa ofensiva pode nos impedir – de Norte a Sul, nas Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas e no Congresso Nacional – de realizar uma discussão mais ampla e profunda sobre o papel da educação e de nós educadores numa sociedade ainda pautada pelo preconceito e pela intolerância em seus mais diversos níveis[4].

O cenário que temos pela frente, marcado pelo agravamento do ódio e das contradições, não pode nos impedir de enxergar os problemas e os fenômenos da vida social de forma mais abrangente, isto é, numa perspectiva histórica. O que nos desafia é que neste quadro de acirramento político-ideológico há muitas batalhas a serem travadas. Ou será que acreditamos que não temos qualquer responsabilidade ética, no sentido gramsciano, diante das pautas conservadoras, tais como o projeto de lei das terceirizações (que, como salientou o sociólogo Ricardo Antunes, guardadas as diferenças do tempo histórico representam um retorno à escravidão), o projeto de (contra) reforma política e a redução da maioridade penal (entendida aqui como o encarceramento em massa dos jovens oriundos das camadas populares historicamente excluídas deste país) que estão tramitando na Câmara Federal?

Os efeitos nefastos da aprovação do PL 4330 para a classe trabalhadora, por exemplo, sequer foram debatidos com o conjunto da sociedade. É inacreditável a maneira como a “grande mídia” abordou o tema, ao apresentar o projeto como uma pretensa modernização nas relações entre capital-trabalho. De acordo com Ricardo Antunes e Graça Druck:

Em síntese, a terceirização é o fio condutor da precarização do trabalho no Brasil, e se constitui num fenômeno onipresente em todos os campos e dimensões do trabalho, pois é uma prática de gestão/organização/controle que discrimina, ao mesmo tempo em que é uma forma de contrato flexível e sem proteção trabalhista, é também sinônimo de risco de saúde e de vida, responsável pela fragmentação das identidades coletivas dos trabalhadores, com a intensificação da alienação e da desvalorização humana do trabalhador, assim como é um instrumento de pulverização da organização sindical, que incentiva a concorrência entre os trabalhadores e seus sindicatos, e ainda a terceirização põe um ‘manto de invisibilidade’ dos trabalhadores na sua condição social, como facilitadora do descumprimento da legislação trabalhista, como forma ideal para o empresariado não ter limites (regulados pelo Estado) no uso da força de trabalho e de sua exploração como mercadoria[5].

Infelizmente não há nenhuma instituição pública capaz de condensar toda a insatisfação popular e que possa evitar a retirada de direitos historicamente conquistados pelo conjunto da classe trabalhadora. Segundo Ricardo Antunes, pesquisas sérias já apontam que trabalhadores(as) terceirizados(as) recebem em média 30% menos, trabalham quase 30% mais e acidentam-se com mais frequência. Contudo, os ataques da chamada ditadura do capital e da lógica do mercado financeiro não se restringem, é claro, ao mundo do trabalho.

O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos assinalou que nos últimos trinta anos o poder do dinheiro passou a condicionar decisivamente o processo democrático, nomeadamente através do financiamento (privado) dos partidos e da corrupção endêmica[6]. Por isso, pergunto: até quando vamos nos conformar em viver numa democracia de aparência e num sistema movido a acordos de bastidores? Que democracia é essa “de aparência, passiva e pouco militante”, na qual os cidadãos não participam? E por que não participam? Uma democracia composta por cidadãos que não refletem ou refletem muito pouco sobre o significado da cidadania. No limite, assistimos ao fortalecimento de símbolos e representações assentados no princípio da competitividade e na filosofia do “do it yourself”[7].

Sobre o projeto de (contra) reforma política é estarrecedor ver que o Congresso Nacional (com a omissão do STF) está empenhado em legitimar/perpetuar a doação de empresas aos políticos, que retribuem o favor legislando contra o interesse da maioria da população ao superfaturar obras, ambulâncias, remédios, etc. Para Vladimir Safatle, o projeto que o Congresso propõe votar “foi feito sob medida para a perpetuação da classe política que é parte atual do problema”. E mais: “não há nada, absolutamente nada a respeito do problema político central de nosso país, a saber, a baixa densidade da participação popular nos processos decisórios e de gestão”[8].

No que diz respeito ao tema da redução da maioridade penal chama atenção a pobreza do debate, conduzido muitas vezes por forte apelo emocional. Para a coordenadora do programa de proteção à criança do UNICEF (Fundação das Nações Unidas para a Infância), jogar menores em prisões de adultos geraria jovens ainda mais violentos e poderia associá-los a alguma facção. Casimira Benge ainda salientou que na realidade os adolescentes são muito mais vítimas de violência do que autores. Dos 21 milhões de brasileiros entre 12 e 18 anos incompletos, apenas 0,013% cometeram crimes contra a vida. Mas a cada hora um adolescente é assinado[9]. Como disse Marcelo Freixo, a sociedade brasileira precisa decidir em que banco quer ver a juventude: se no banco da escola ou no banco dos réus[10]! Diversos estudos comprovam que o encarceramento precoce não garante a redução da violência. Os dados sobre o inchamento do sistema carcerário preocupam: entre 1992 e 2013, a quantidade de detentos cresceu 317,9%. Temos a terceira maior população carcerária do mundo, com quase 600 mil presos. Mas, afinal, será mesmo que com o encarceramento em massa teremos uma sociedade mais segura? Mesmo sabendo que as taxas de homicídio subiram 24% nos últimos oito anos? Por que não observamos a experiência de outros países, como Espanha e Alemanha que voltaram atrás após adotarem a medida?

Em artigo recente, intitulado “Quando o fascismo cresce, silenciar é ser cúmplice”, o cineasta Jorge Furtado afirmou que “a história ensina que os inimigos da democracia se utilizam da frustração e dos anseios legítimos da sociedade […] para chegar ao poder, e então passam a exercê-lo com tirania, perseguindo minorias, promovendo a intolerância e a violência. E aí é tarde demais para combatê-los pacificamente”[11]. O grande problema é continuarmos alheios ao debate político. Para a antropóloga Rosana Pinheiro Machado, o aumento do conservadorismo encontrou espaço justamente diante de um vácuo moral, ético e político deixado pelo Partido dos Trabalhadores[12]. Nesse sentido, é preciso reconhecer as críticas feitas ao governo Dilma Rousseff, eleita legitimamente pela maioria da população brasileira para manter e aprofundar os avanços dos programas sociais, mas que em nome da governabilidade entregou a economia aos banqueiros, a agricultura aos latifundiários do agronegócio e a política aos “sanguessugas” do PMDB. Ademais, a inclusão pelo consumo permitiu um alinhamento aos valores neoliberais.

Por outro lado, não é possível ficar calado diante daqueles setores da sociedade brasileira que pedem a volta da ditadura militar e do terrorismo de Estado. É preciso recordar que recentemente o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. As práticas de tortura em prisões brasileiras aumentaram nos últimos anos, o que talvez seja “a expressão mais concreta da persistência da impunidade e, mais grave ainda, de democracia incompleta”[13]. Segundo a escritora Eliane Brum, uma das formas de lidar com aqueles que clamam por intervenção militar é dar voz às crianças torturadas, de várias maneiras, pela ditadura:

[…] Como João Carlos Schmidt de Almeida Grabois, o Joca, antes mesmo de nascer. Ele estava na barriga da mãe, Crimeia, quando ela levou choques elétricos, foi espancada em diversas partes do corpo e agredida a socos no rosto. Enquanto ela era assim brutalizada, os agentes da repressão ameaçavam sequestrar seu bebê tão logo nascesse. Quando os carcereiros pegavam as chaves para abrir a porta da cela e levar Crimeia à sala de tortura, o bebê começou a soluçar dentro da barriga. Joca nasceu na prisão e, anos depois, já crescido, quando ouvia o barulho de chaves, voltava a soluçar. A marca da ditadura nele é um soluço. Perto da hora do parto, em vez de levarem Crimeia para a enfermaria a colocaram numa cela cheia de baratas. Como o líquido amniótico escorria pelas pernas, elas a atacavam em bandos. Isso durou quase um dia inteiro. Só no fim da tarde, com outros presos gritando junto com ela, a levaram para o hospital. O obstetra disse que, como não estava de plantão, só faria a cesariana no dia seguinte. Crimeia alertou que seu filho poderia morrer. O médico respondeu: ‘É melhor! Um comunista a menos’. O pai de Joca foi assassinado pelo regime militar meses depois de o menino nascer. A primeira vez que ele viu o rosto do pai foi aos 18 anos, numa foto nos arquivos do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) de São Paulo[14].

A história da violação dos direitos humanos pelo Estado brasileiro vai além dos crimes cometidos na última ditadura. Enquanto não formos capazes de reconhecer que os alicerces de nossa sociedade foram o autoritarismo e a exclusão social, a “conquista” com genocídio de índios, seguida de colonização com escravidão africana[15], a ignorância e o preconceito continuarão sendo ostentados como um “troféu”. Creio que nossa principal tarefa seja assumir como bandeira: 1) a construção de uma sociedade mais justa e igualitária; 2) o combate sem tréguas ao racismo e a defesa dos direitos humanos; 3) e, por fim, a luta contra toda forma de violência e discriminação contra a mulher, a comunidade LGBT e a juventude negra[16].

Compreender historicamente uma sociedade é assumir um compromisso com as lutas sociais travadas no presente. Certamente o ensino de história por si só não será capaz de conter o avanço do conservadorismo e da barbárie entre nós, mas é inegável que “aprender com o passado e construir um futuro melhor é a utopia de grande parte das pessoas que trabalham com o a história”[17]. Quem sabe não começamos hoje a difundir uma nova cultura política, em que os valores coletivos e solidários ocupem o primeiro plano e joguem por terra a competição, o individualismo e a defesa da meritocracia como valores preponderantes, sempre ancorados em discursos descaradamente homofóbicos, machistas, racistas, autoritários e elitistas e numa visão de mundo hierárquica e preconceituosa que insiste em associar (como nos programas policiais do final da tarde) pobreza e criminalidade[18].


[1] Professor de História Contemporânea (Unespar-Paranaguá/PR) e doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

[2] PINSKI, Jaime; PINSKY, Carla. “O que e como ensinar. Por uma história prazerosa e consequente”. In: KARNAL, Leandro (Org.). História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. São Paulo: Contexto, 2003. p. 17-36.

[3] Ibid., p. 25-26.

[4] Como a morte de Cleydison Pereira Silva, brutalmente espancado por “justiceiros” no Estado do Maranhão. In: <http://www.revistaforum.com.br/blog/2015/07/o-linchamento-como-sintoma/>, acesso em 10 de julho de 2015.

[5] ANTUNES, Ricardo; DRUCK, Graça. A terceirização como regra? Revista TST, Brasília, v. 79, n. 4, p. 224, out./dez. 2013.

[6] SANTOS, Boaventura de Sousa. “O contra-senso comum”. Disponível em: <http://cartamaior.com.br/?%2FColuna%2FO-Contra-senso-Comum%2F33821>, acesso em 10 de julho de 2015.

[7] POGGI, Tatiana. “A barbárie em nós: reprodução ampliada do capital e do ódio”. Disponível em: <https://capitalismoemdesencanto.wordpress.com>, acesso em 10 de julho de 2015.

[8] Ver: <http://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/2015/05/1630725-reforma-politica.shtml>.

[9] Ver: <http://www.cartacapital.com.br/blogs/cartas-da-esplanada/201creduzir-maioridade-nao-e-solucao-ao-contrario-pode-agravar-a-violencia-1439.html>.

[10] FREIXO, Marcelo. “O mito da redução da maioridade penal”. Disponível em: <http://www.insurgencia.org/o-mito-da-reducao-da-maioridade-penal/>, acesso em 10 de julho de 2015.

[11] FURTADO, Jorge. “Quando o fascismo cresce, silenciar é ser cúmplice”. Disponível em: <http://www.casacinepoa.com.br/o-blog/jorge-furtado/quando-o-fascismo-cresce-silenciar-%C3%A9-ser-c%C3%BAmplice>, acesso em 10 de julho de 2015.

[12] MACHADO, Rosana Pinheiro. “A falência do PT, a ascensão da direita e a esquerda órfã”. Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/politica/a-falencia-do-pt-a-ascensao-da-direita-e-a-esquerda-orfa 7538.html>, acesso em 10 de julho de 2015.

[13] PADRÓS, Enrique Serra. “Ditadura brasileira: verdade, memória… justiça?” Historiae: Revista de História da Universidade Federal do Rio Grande, v. 3, n. 3, p. 68, 2012.

[14] BRUM, Eliane. “Aos que defendem a volta da ditadura”. Disponível em: <http://brasil.elpais.com/brasil/2014/12/08/opinion/1418042130_286849.html>, acesso em 10 de julho de 2015.

[15] “O tráfico atlântico de africanos escravizados para as Américas é considerado pela ONU como um crime contra a humanidade. O Estado brasileiro, nascido em 1822, teve responsabilidade direta nesse processo: dos horrores da travessia à violência da escravização em terras brasileiras”. Ver: <http://conversadehistoriadoras.com/2015/06/30/memoria-da-escravidao-no-brasil/>.

[16] “O Brasil é o país onde mais se mata no mundo, superando muitos países em situação de guerra. Em 2012, 56.000 pessoas foram assassinadas. Destas, 30.000 são jovens entre 15 a 29 anos e, desse total, 77% são negros. A maioria dos homicídios é o praticado por armas de fogo, e menos de 8% dos casos chegam a ser julgados. Mais absurdo que estes números, só a indiferença. A morte não pode ser o destino de tantos jovens, especialmente quando falamos de jovens negros. As consequências do preconceito e dos estereótipos negativos associados a estes jovens e aos territórios das favelas e das periferias devem ser amplamente debatidas e repudiadas”. Ver: <https://anistia.org.br/campanhas/jovemnegrovivo/>.

[17] QUADRAT, Samantha Viz. “A emergência do tema dos direitos humanos na América Latina”. In: FICO, Carlos; FERREIRA, Marieta de Moraes; ARAUJO, Maria Paula; QUADRAT, Samantha Viz (Orgs.). Ditadura e democracia na América Latina: balanço histórico e perspectivas. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2008. p. 391.

[18] BIANCHI, Álvaro. “A guerra que estamos perdendo”. Disponível em: <http://blogjunho.com.br/a-guerra-que-estamos-perdendo/>, acesso em 10 de julho de 2015.

** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

 

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