Durante muito tempo o feminismo dedicou-se a genitalizar o sofrimento, para explicar que as mulheres sofrem porque tem vagina. Sabemos também que essa associação foi importante para que muitas mulheres cis entendessem seu próprio corpo, a culpabilização dada a ele e, sobretudo, desmitificar a associação da vagina como algo negativo, de enfrentar os ensinamentos de que não devemos tocá-la, de que ela é posse de uma sociedade machista que (ainda) nos ensina a não nos conhecer, a não nos dar prazer e de que apenas homens podem tocá-la. Esses passos foram e são até hoje muito importantes para que mulheres cis desconstruam o medo, o receio e um certo nojo que carregamos por possuir vagina.
Texto de Thayz Athayde.
Porém, essa associação mulher-vagina, sabemos hoje, é cissexista. Nem toda mulher tem vagina, nem todo homem tem pênis. As problematizações do transfeminismo e da teoria queer (lembrando que são duas teorias diferentes) nos trouxeram reflexões importantíssimas sobre o tema, afinal, sofremos opressão por ter vagina ou por estarmos encaixadas dentro da categoria mulher? É claro que, em sua maioria, as pessoas que discutem gênero e sexo não concordam com o que é dito sobre ser mulher dentro dessa categoria normativa. Transgredimos, subvertemos, teimamos e mudamos as regras do jogo. Melhor exemplo disso é a Marcha das Vadias. Quer me chamar de Vadia? Eu digo que isso é ser livre, que é empoderar meu corpo e fazer apenas o que eu quero com ele.
Ressignificar as categorias do que é ser mulher também passar por discutir desgenitalização. Quando pensamos em ser mulher é comum associarmos imediatamente a pessoas que têm vagina. Ao fazermos essa associação, mulheres com pênis são excluídas do conceito mulher, pois associamos ser mulher com a genitália. Nas palavras de Hailey Kaas:
“Uma mulher trans* tem sua identidade desqualificada porque a configuração do seu genital não é a mesma que se espera de uma mulher (algo que eu chamo de “tríade císgênera” mulher/vagina/feminilidade). Mas ela não é desqualificada pelo genital por si só, a questão é uma mulher com pênis. Visto que pênis é associado ao homem/masculinidade e vagina associada à mulher/feminilidade, isso que é problemático para uma sociedade pautada pela norma cisgênera.”
Pensando nas pontuações da Hailey, vamos entrar nas discussões que ocorrem dentro do feminismo.
Ser mulher é ter vagina?
É comum ouvirmos a frase “eu sofri (sofro) violências por ter buceta”. Você, mulher cis, sofreu violência física e psicológica? Mulheres trans* também. Você, mulher cis, sofre assédio na rua? Tem medo de ser estuprada? Mulheres trans* também. Percebam que as violências ocorrem não por conta da vagina, afinal, não andamos com a genitália pendurada na testa, mas sim por conta de ser: mulher.
Quando problematizamos a genitalização dentro do feminismo, estamos provocando uma discussão sobre o que Judith Butler chamou de gêneros inteligíveis, ou seja: a “coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo”. (p. 38). Quebrar a lógica da equação mulher-vagina e homem-pênis, faz com que comecemos a entender que as violências ocorrem porque vivemos em uma sociedade em que ser mulher ou ter comportamentos femininos, é ruim.
Podemos citar aqui vários exemplos. Quem nunca ouviu o comentário “Que coisa de mulherzinha” para dizer que algo ou alguém é mais fraco? Ou então, chamar alguém de “viado” para dizer que a roupa que o homem está usando é feminina demais e pode comprometer sua masculinidade? Sobre os palavrões, a lista é grande: puta, vadia, vagabunda, filha da puta. Até mesmo quando vamos xingar o homem, a mulher é quem paga o pato: “seu filho da puta”. A mulher é culpabilizada a todo momento. Somos culpadas por ser mulheres. Somos culpadas por cometermos esse crime de ser mulher.
Debater a desgenitalização no feminismo é também localizar-se temporalmente no que estamos vivenciando hoje. Ora, discutir sobre violência contra a mulher e enfatizar que a mulher é violentada por ter uma vagina, é voltar a argumentos biologicistas ou ainda negar que mulheres trans* que possuem pênis não sofrem violência por serem mulheres.
Ao problematizarmos que a violência contra a mulher nunca vem apenas de um lugar é possível entender que, por exemplo, uma mulher cis que não se depila será considerada nojenta, será rechaçada por uma sociedade machista que elenca as formas de como uma mulher deve ser. Essa violência, acontece não porque ela tem vagina, mas porque é uma mulher que ousou não fazer o que uma “mulher de verdade” deve fazer. Uma mulher trans* que não se depila também será considerada nojenta, rechaçada pela mesma sociedade machista. Porém, as especulações não serão limitadas a dizer que ela não é uma “mulher de verdade”, mas sim que ela não é mulher, ponto. Retirando totalmente sua identidade.
Veja, a mulher cis, ao bagunçar os preceitos machistas, será colocada em um lugar de uma mulher outra e não a ideal. Já a mulher trans* será julgada como uma não-mulher. Afinal, ao ser designada com um corpo masculino ao nascer, o médico parece ter sentenciado seu destino na sociedade, utilizando-se de sua “autoridade” para falar sobre “a verdade do sexo”. Apenas algumas pessoas são autorizadas a falar “a verdade do sexo”, já nos contava Michel Foucault no livro História da Sexualidade I – A vontade de saber. As pessoas trans* não são autorizadas a falar da sua própria identidade, em nossa sociedade quem deve fazê-lo é a medicina, a psiquiatria e a psicologia, campos estes que costumam genitalizar as identidades.
Desgenitalizar para avançar os debates feministas
Desgenitalizar o feminismo significa entender que a violência e o machismo começam no que se espera de nós, com todas as suas formas de manifestação em conjunto com outras formas de opressão. É entender que, estamos todas lutando contra o estatuto da mulher ideal, da mulher universal, da mulher verdadeira. Porém, não podemos jamais esquecer que essa luta tem cor, orientação e corpos maravilhosamente diferentes. É importante lembrar que não não estamos juntas por um genital, mas sim pela vontade de destruir todos os aspectos que nos violentam enquanto mulher.
Ser feminista, para mim, diz respeito a fazer críticas ao feminismo, ao lugar que ocupo enquanto feminista e o que minha postura como feminista pode desencadear. Responsabilizar-se pelo que falo também é ser feminista. Quando tento justificar a violência que sofro por conta de ter vagina, posso aproximar-me da mesma fala de autoridade utilizada pela medicina, psiquiatria e psicologia. Ao genitalizar a violência contra a mulher é possível que esteja reforçando mais uma vez as discussões acerca de um gênero “verdadeiro”, “real”, como se as pessoas cis fossem mais verdadeiras e reais. É corroborar com a ideia de que mulheres cis são mulheres biológicas e mulheres trans* não. Mulheres trans* são feitas de plástico, por acaso? Isso toda sociedade machista, cissexista e transfóbica já faz. Nós, feministas, também nos apoiaremos nisso? Como disse Butler:
“Os gêneros não podem ser verdadeiros nem falsos, reais nem aparentes, originais nem derivados. Como portadores críveis desses atributos, contudo, eles também podem se tornar completa e radicalmente incríveis.” (p. 201)
Vamos destruir junto com o machismo a ideia de gênero verdadeiro, original e real. Vamos desmantelar as categorias normativas do que é ser mulher. Sejamos mulheres com todos nossos corpos heterogêneos. Sejamos mulheres incríveis!
Referência
BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2012. 236 p.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1985.
Thayz Athayde
A Rainha da Copacabana Feminista. Delicada e nervosinha. Mas, eu posso, sou a Vossa Majestade.
Fonte: Blogueiras Feministas