Desigualdades raciais no Brasil e suas múltiplas dimensões

FONTEPOR MÁRCIA LIMA, do Oxfam

Nos últimos quinze anos, o Brasil passou por transformações importantes que reformularam a agenda de estudos sobre as desigualdades raciais. Tais transformações estão associadas a mudanças de caráter estrutural e a formas de enfrentamento das desigualdades raciais por meio de políticas de inclusão social.

Em relação às mudanças estruturais, destacam-se as de caráter demográfico, como a queda contínua da fecundidade, inclusive entre os mais pobres, novos arranjos familiares e alterações no padrão da população em idade ativa. Já no campo econômico, a primeira década deste século foi marcada pelo crescimento econômico e seus
efeitos significativos no mercado de trabalho, como o aumento da formalização e da contribuição previdenciária, a valorização do salário mínimo e a elevação da escolaridade da força de trabalho. Todos esses aspectos contribuíram para uma mudança no cenário da desigualdade racial.

No caso das políticas de inclusão, embora seus efeitos sejam reforçados pelas mudanças estruturais citadas anteriormente, sua ampliação e reformulação foram extremamente importantes para a diminuição do número de pessoas em situação de pobreza, assim como a ampliação do acesso dos mais pobres a oportunidades antes restritas à parcela mais rica da sociedade. No que concerne à diminuição da pobreza, as políticas de transferência de renda foram fundamentais. Mesmo que não exista nenhuma condicionalidade ou critério de cunho étnico-racial, uma expressiva porcentagem dos beneficiários é de negros. Ou seja, na base da pirâmide social, políticas sociais sem recorte racial foram eficazes para melhorar a situação da população negra.

No que diz respeito ao acesso às oportunidades de inserção nos estratos médio e alto da sociedade, tais mudanças foram representadas pela ampliação do acesso da população negra ao ensino médio e superior, e neste último nível de ensino a inclusão deveu-se às políticas de ações afirmativas de recorte social e racial e à expansão do próprio sistema de ensino superior. De acordo com os dados censitários, em 2000 a proporção de estudantes de 15 a 17 anos pretos e pardos que frequentavam o ensino médio era, respectivamente, de 28,3% e 31%; em 2010, esses percentuais passaram a 49,7% e 53,7%. No caso do ensino superior, o crescimento também foi muito expressivo: se em 2000 apenas 6,3% e 8,4% dos estudantes negros entre 18 a 24 anos frequentavam esse nível de ensino, em 2010 esses percentuais passaram a 30,4% e 27,8%, respectivamente. Ou seja, em dez anos quadruplicou a participação da população negra nesse nível de ensino. Porém, os dados também revelam que, embora tenha ocorrido uma queda significativa das desigualdades raciais, elas ainda persistem: a participação dos brancos nesses níveis de ensino era de 68,1% no caso do ensino médio e 60,7% no ensino superior.1 Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), com base na Pnad-2007, realizou projeções para a diminuição da desigualdade racial e apontou que seria necessário manter o mesmo ritmo de queda durante ao menos quarenta anos para que se consolidasse uma sociedade racialmente mais igualitária.

No que diz respeito ao mercado de trabalho, houve um crescimento expressivo da participação dos negros com nível superior. Entretanto, quando se analisam os retornos do investimento em educação superior (considerando os rendimentos do trabalho), observa-se novamente que o aumento da escolaridade foi importante, mas não decisivo, para diminuir a desigualdade racial. Observando a inserção de brancos e negros com nível superior, notam-se diferenças nos estratos ocupacionais, com menor participação dos negros nos estratos mais altos, e entre os que possuem qualificações e inserções semelhantes, há distorções salariais. Esses dados vão ao encontro da literatura sobre desigualdade racial, que demonstra a existência de uma forte rigidez social no Brasil, independentemente de raça/cor.

Ou seja, classe importa. Contudo, a rigidez social torna-se uma rigidez racial nas tentativas de aquisição ou manutenção de alto status, na menor chance de mobilidade, na maior desigualdade salarial entre os mais escolarizados, isto é, na competição social por espaços e posições de prestígio. Raça, portanto, é um critério que configura a estratificação, principalmente no
acesso aos níveis mais altos de ensino, em processos de mobilidade social e nos retornos dos investimentos educacionais.

Podemos afirmar, então, que há um processo de redução das desigualdades raciais no Brasil do ponto de vista redistributivo. Porém, deve-se enfatizar a importância das políticas públicas voltadas para a diminuição das desigualdades sociais e raciais nesse processo. Os dados apontam que só houve uma efetiva diminuição das desigualdades raciais nos períodos em que o Estado brasileiro definiu políticas de inclusão, embora ainda seja necessário produzir evidências empíricas mais explícitas que relacionem esses fenômenos.

A sobreposição raça e classe é uma característica da desigualdade brasileira. Entretanto, políticas de cunho universalista não foram suficientes para combater as desigualdades raciais, mesmo com a sobrerrepresentação dos negros na população em situação de pobreza. Vale lembrar que ainda não foram esgotadas as soluções de cunho social/universal, como a oferta de boa escola pública em especial nas regiões mais pobres. Mas a histórica indiferença da sociedade e do Estado brasileiros em relação à pobreza relaciona-se também com o fato de esse grupo ser majoritariamente negro. Nesse sentido, as ações afirmativas de acesso ao ensino superior são importantes porque tocam no espaço de privilégio da classe média e dos ricos, no qual prevalece a presença da população branca.

Por fim, há um último aspecto importante acerca da desigualdade racial: aquele que não envolve diretamente desigualdades de bens e recursos. Há outras possibilidades de observar as desigualdades raciais: por exemplo, a violência racial, em especial a brutalidade policial com os jovens negros, fortemente pautada nos estereótipos raciais do negro como criminoso em potencial, e ainda os estereótipos em torno das mulheres negras, que oscilam entre o confinamento no serviço doméstico e sua sexualização em torno da figura da “mulata”. Em síntese, o tema da desigualdade racial nos obriga a pensar sobre suas múltiplas dimensões, assim como sobre os efeitos do racismo em sua produção e reprodução. 

*MÁRCIA LIMA É PROFESSORA DO DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA DA USP E PESQUISADORA DO CENTRO DE ESTUDOS DA METRÓPOLE.

 

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