Devir quilomba e a feminização do conceito de quilombo no Brasil

Faz tempo que a imagem dos quilombos tem sido utilizada pelos movimentos negros para evocar resistência, bem como um modelo societário a ser seguido. Até o século XX, a imagem predominante sobre a resistência quilombola valorizava as práticas masculinas em termos de virilidade, de guerra e de força. Entretanto, nos últimos anos vêm ocorrendo transformações significativas nas narrativas sobre os quilombos. A recente visibilidade e o reconhecimento do protagonismo das mulheres quilombolas na luta pela terra exprimem que o conteúdo dessas mudanças incorpora a dimensão de gênero. 

Oficina de Mulheres Quilombolas-CONAQ, quilombo Maria Joaquina-RJ. Fonte: http://conaq.org.br/coletivo/mulheres/ Foto: Ana Carolina Fernandes.

Esses deslocamentos de sentido materializam-se em inúmeros trabalhos acadêmicos, documentários e matérias jornalísticas. Destaca-se, em 2020, a publicação do livro Mulheres quilombolas: territórios de existências negras femininas. A obra coletiva escrita por dezoito mulheres quilombolas apresenta teorizações por meio dos enfrentamentos sobre as violências que incidem sobre seus corpos e suas comunidades. Nas últimas três décadas, as mulheres quilombolas deslocaram-se da invisibilidade, ocupando a cena pública como autoras de suas histórias.

Quilombo de São José da Serra (Valença) – Encontro Jongo da Serrinha e comunidade de São José da Serra (2014); Fonte: Arquivo Pessoal; Foto: Isabel Nascentes 

Fruto desse contexto, “devir quilomba” é um conceito que emerge como desdobramento da tese Territórios de afetos: práticas femininas antirracistas nos quilombos contemporâneos do Rio de Janeiro, defendida, por mim, em 2018, no programa de Pós-Graduação em História da Unicamp. O arco temporal da pesquisa parte do fim de 1980, quando foi criado o direito territorial para as comunidades remanescentes de quilombo, chegando até a primeira década dos anos 2000, quando ocorre, de forma simultânea e paradoxal, a ampliação de políticas públicas em territórios quilombolas e o crescente processo de burocratização de acesso ao direito territorial. Por fim, a pesquisa descreve o cenário de desmonte das políticas públicas entre os anos de 2016 e 2017, depois do golpe parlamentar. Ao longo da pesquisa foram entrevistadas 48 pessoas, especialmente mulheres. Além das fontes orais, construídas ao longo da pesquisa, foram analisados relatórios de identificação antropológicos, documentos cartoriais, legislações sobre a questão territorial quilombola, projetos de lei, textos jornalísticos, documentos fílmicos, bem como a análise do acervo de história oral do Laboratório de História Oral da Universidade Federal Fluminense (Labhoi/UFF).

Por que devir quilomba? Devir, conceito filosófico que pressupõe mudança, acrescido da palavra quilomba, evoca as condições históricas que produziram a feminização da ideia de quilombo, possibilitando a visibilidade contemporânea das mulheres quilombolas na luta pela terra. Vale destacar que o processo de feminização não pode ser confundido e identificado com a palavra mulher, mas diz respeito à valorização de aspectos culturais atribuídos à cultura feminina, como a ética do cuidado de si, do outro e do espaço onde se vive. 

Em termos históricos, até o início dos anos 1990, o termo quilombo, atávico à experiência de Palmares, era identificado como um ato de resistência pensado nos termos da cultura masculina (guerra, violência, virilidade). Falar de quilombo significava tratar dos heroicos atos de homens como Zumbi dos Palmares, Ganga Zumba, Manoel Congo, entre outros. Ocorre que os heróis são geralmente construídos e perpetuados dentro de papéis convencionais de gênero. Até a década de 1990, as experiências das mulheres quilombolas foram invisibilizadas ou narradas de forma tímida pela historiografia brasileira. Ademais, até aquele momento, os quilombos eram pensados como espaços isolados de negros fugidos. 

Não por acaso, em 1988, quando se criou na Constituição Federal o direito territorial dos chamados “remanescentes das comunidades de quilombos”, a resistência quilombola era pensada por meio de uma perspectiva masculina e bélica. Tratando-se da produção historiográfica, destaco a pesquisa da historiadora Beatriz Nascimento que, no fim dos anos 1970, apontava outros aspectos da resistência quilombola. Dentre eles, a importância do que ela definiu como “paz quilombola”. Para a autora, um quilombo como o de Palmares, entre um ataque e outro da repressão oficial, mantinha-se ora retroagindo, ora se reproduzindo. E os tempos de paz eram fundamentais para a longevidade dos quilombos, porque permitiam a reprodução dos seus modos de vida. 

De todo modo, em 1988, a promulgação do direito quilombola, na forma do artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (adct), foi uma vitória da luta antirracista, já que, de forma inédita, a legislação concedia o direito a setores da população negra. Tratava-se de uma vitória histórica das organizações do movimento negro. Entretanto, depois de quase uma década desde a criação do dispositivo jurídico, a aplicabilidade da lei ainda esbarrava na definição tradicional de quilombo, entendido como um lugar isolado onde os negros se refugiavam. Acreditava-se, então, que existiam poucos grupos que poderiam reivindicar esse direito. Nesse sentido, a luta pela terra mesclava-se a luta pela ressemantização do conceito de quilombo. 

No Rio de Janeiro, a mobilização política provocada pela comunidade de Campinho da Independência a levou a inclusão do grupo, ao final de 1997, na lista das 50 comunidades que a Fundação Cultural Palmares (FCP) prometia reconhecer como remanescente de quilombos em todo o país. Já em 1998, o Instituto de Terras e Cartografia do Estado do Rio de Janeiro (ITERJ) promoveu a primeira reunião com a finalidade de dar prosseguimento à regulamentação fundiária de Campinho. Para tanto, estabeleceu-se um convênio com a FCP para a identificação das áreas. Em 1999, além do laudo sobre Campinho (a cargo de Neusa Gusmão), outros cinco laudos antropológicos levaram ao reconhecimento oficial de cinco comunidades: Rasa, Santana, Caveira, São José da Serra e Bracuí. Havia uma distância entre o conceito de quilombo proposto na legislação da época e as trajetórias das comunidades. Nenhuma das seis comunidades que reivindicavam o direito se originou a partir de escravos fugidos. Algumas delas foram formadas pela desagregação de antigas fazendas, compostas por grupos de ex-escravos que permaneceram em suas terras abandonadas pelos antigos senhores (Caveira, Rasa, Santana), e outras foram constituídas por meio de doações dos antigos proprietários, algumas vezes no momento da abolição (Campinho, Bracuí e São José). 

Foi naquele contexto, de disputa discursiva sobre os significados quilombos, que mulheres entram em cena, ou melhor, nos documentos oficiais. Elas e a cultura feminina foram sendo selecionadas como os novos símbolos da terra, o que se reforçou com o fato de que, na batalha pela ressemantização do termo quilombo, reivindicava-se as relações que se estabelecem com o território – e não somente a continuidade histórica. Esse processo pode ser visualizado por meio da análise de alguns relatórios antropológicos produzidos, na década de 1990, no estado do Rio de Janeiro.

Comunidade Campinho da Independência Paraty

Em 1998, Neusa Maria Gusmão, antropóloga do departamento de Ciências Sociais da USP, transformaria seu trabalho de quase uma década no relatório antropológico da comunidade negra de Campinho da Independência. Sua tese de doutorado sobre o grupo havia sido defendida em 1996 e publicada pela Fundação Cultural Palmares, sob o título “Terra de Pretos, Terra de Mulheres”. Nas memórias de homens e mulheres do então bairro negro rural Campinho da Independência, três mulheres apareciam recorrentes na fala de seus colaboradores: Vovó Antonica, Vovó Luiza e Vovó Marcelina. Consta que a doação das terras foi feita pelos antigos senhores para as três ex-escravizadas da casa-grande. Além disso, junto às três primeiras, Gusmão encontrou mulheres que se destacavam em todas as gerações, lembradas em razão “dos bens e dons herdados”, que são as “Tias” ou “Madrinhas”. Em suas palavras, trata-se de “uma terra uterina onde as mulheres daquela comunidade passam a ser suportes de reprodução da vida camponesa”. Assim, a terra não é vista como um espaço que poderia ser transformado em mercadoria, mas como um território concernente à ancestralidade cuja linhagem é feminina.

Comunidade de Caveiras – São Pedro da Aldeia

A imagem feminina foi também empregada pelo sociólogo José Paulo Freire de Carvalho para construir o conceito em Filhos da Terra: comunidade Negra Rural de Caveiras – São Pedro da Aldeia, presente no relatório antropológico que produziu em 1998. A principal testemunha de Carvalho foi Rosa Geralda da Silveira, tomada como uma “guardiã da ancestralidade” e da memória que narra e reconstrói as relações de parentesco para o pesquisador. Rosa Silveira, na época, era respeitada pela comunidade pelo seu engajamento na luta pela terra em virtude de sua atuação no Sindicato dos Trabalhadores Rurais. É por meio da noção de “filhos da terra” que o sociólogo usa a metáfora do útero para falar da terra. 

Quilombo de São José da Serra (Valença) – Encontro Jongo da Serrinha e comunidade de São José da Serra (2014); Fonte: Arquivo pessoal; Foto: Isabel Nascentes.

Comunidade de São José da Serra Valença

No relatório antropológico de São José da Serra, comunidade situada no Sul Fluminense do estado do Rio de Janeiro, produzido em 1998 por Hebe Mattos e Lídia Meirelles, Zeferina do Nascimento foi uma das principais colaboradoras da pesquisa para a construção histórica. Depois da morte de D. Zeferina, ela se torna um ícone para a comunidade. Além do seu papel como mãe de santo no terreiro de umbanda da comunidade, D. Zeferina é apontada por vários moradores de São José da Serra como aquela que, além de introduzir as crianças no jongo, mudaria as relações de gênero dentro da comunidade. 

Em conjunto nos três relatórios analisados, apesar dos diferentes estilos narrativos e escolhas teóricas, é possível visualizar que a seleção das mulheres e das práticas femininas fazem parte de um contexto de feminização da cultura que estava em curso: um movimento influenciado pelas lutas feministas, que afetaram os valores, os comportamentos e os sistemas de representação. A feminização é um processo que favorece que as novas identidades sejam construídas por meio de bases femininas.

Homem, negro, viril? Na década de 1990, no Rio de Janeiro, essas imagens não convergiam com os novos símbolos que passaram a ser selecionados pelas comunidades quilombolas. Nesse sentido, as transformações semânticas em torno da ideia de quilombo não podem ser dissociadas de um processo mais amplo de feminização da cultura, cujos desdobramentos podem ser visualizados atualmente de forma mais expressiva.

Assista ao vídeo da historiadora Mariléa de Almeida no Acervo Cultne sobre este artigo:

 

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo deste texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC): 

Ensino Fundamental: EF09HI03 (9º ano: Identificar os mecanismos de inserção dos negros na sociedade brasileira pós-abolição e avaliar os seus resultados); EF09HI08 ( 9º ano: Identificar as transformações ocorridas no debate sobre as questões da diversidade no Brasil durante o século XX e compreender o significado das mudanças de abordagem em relação ao tema; (EF09HI09) (9º ano: Relacionar as conquistas de direitos políticos, sociais e civis à atuação de movimentos sociais).

Ensino Médio: EM13CHS101 (Identificar, analisar e comparar diferentes fontes e narrativas expressas em diversas linguagens, com vistas à compreensão de ideias filosóficas e de processos e eventos históricos, geográficos, políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais); EM13CHS103 (Elaborar hipóteses, selecionar evidências e compor argumentos relativos a processos políticos, econômicos, sociais, ambientais, culturais e epistemológicos, com base na sistematização de dados e informações de diversas naturezas (expressões artísticas, textos filosóficos e sociológicos, documentos históricos e geográficos, gráficos, mapas, tabelas, tradições orais, entre outros).


Mariléa de Almeida 

Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp); E-mail: [email protected]; Instagram: @almeidamarileade.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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