Boa tarde a todas, todes e todas!
Boa tarde, Doutora Sueli Carneiro!
Boa tarde, Magnífica reitora Márcia Abrahão e professor Mário Brasil!
Boa tarde ao trio de musicistas, Teresa Lopes, Cris Pereira e Amilcar Paré!
Boa tarde a todo mundo que acredita no que está acontecendo aqui hoje.
“Abraso-me eu-mulher e não temo,
sei do inebriante calor da chama
e quando o temor me visita,
não temo o receio,
sei que posso me lançar ao fogo
e da fogueira me sair inunda,
com o corpo ameigado pelo odor da queima.”
Recorro aos versos de Conceição Evaristo para saudar a nossa muito valorosa Doutora Sueli Carneiro, esta intelectual ativista que traz consigo a força do ferreiro que não teme o fogo. Mais do que não temer, Ogum produz com o fogo os instrumentos com os quais a comunidade executa os trabalhos necessários para o bem comum.
A imagem é, de fato, muito apropriada para alguém que tem sistematicamente criado possibilidades para a superação de gravíssimos equívocos do chamado “pensamento social brasileiro”, com a segurança de que essas batalhas são mais que necessárias.
A excelência da obra de Sueli Carneiro, certamente, não se encerra em seus inúmeros escritos e outras incontáveis falas. Ela tem força coletiva. Avança nas palavras e vozes das pessoas para quem tem sido referência e orientação. Ouso dizer que a maior parte de sua obra só poderá ser mesmo dimensionada se formos capazes de reconhecer as transformações sociais com as quais ela tem estado diretamente implicada.
Sueli Carneiro integra a geração de mulheres negras e homens negros que nomeou, descreveu, analisou e deslegitimou publicamente o dispositivo que por muito tempo autorizou a violação da humanidade e da cidadania de africanos e seus descendentes neste país: o mito da democracia racial.
Este, certamente, foi o mais importante acerto de contas com a nossa experiência nacional que vivemos desde a segunda metade do século vinte. Um feito cujos resultados têm impactado a maneira como o povo brasileiro enxerga a si mesmo. Contrariando projeções racistas e até mesmo práticas cotidianas com a força de promover genocídios, em vez da dissolução das presenças negras e indígenas, o Brasil é hoje uma nação em que somamos 57% da população.
Nesse território, como nos ensina Sueli Carneiro, a destruição do pensamento das gentes negras é um projeto de dominação inaugurado por colonizadores brancos há séculos, mas até hoje esse epistemicídio não se completou e não se completará.
O desconhecimento a respeito da variedade de saberes mobilizados por esses indivíduos e grupos é parte das dinâmicas de desumanização contra as quais seguimos lutando. E, como nos disse Luiza Bairros: “A criação de um sentimento de valorização da vida é uma grande parte do desafio que nós temos pela frente”. Ao mesmo tempo, os enfrentamentos em defesa da produção intelectual dos segmentos sociorraciais negros já são, por si, demonstrações eloquentes de que a imagem de vencidos e derrotados não dá conta do que temos vivido há gerações.
Em tempo, é bastante oportuno que a outorga deste título ocorra no mês em que batemos a marca do bicentenário da independência do Brasil. Nesta tarde de quarta-feira, 21 de setembro de 2022, neste auditório justamente renomeado de Esperança Garcia, é importante que estejamos dando testemunho de outro grande feito de Sueli Carneiro e sua geração: a demonstração de que o Movimento Negro e o Movimento de Mulheres Negras são sujeitos políticos estratégicos e indispensáveis na formulação e na execução de qualquer projeto de sociedade comprometido com a equidade.
Essa é parte da história que nossa história já conta graças a agenda de debate público consolidada por ela e por muitas pessoas que estão aqui hoje e outras milhões espalhadas nas cincos regiões. Entre nós e pelos nossos, não temos dúvida em afirmar: “Enquanto houver racismo, não haverá democracia” – palavra de ordem da Coalizão Negra por Direitos, que tem em Sueli Carneiro um dos seus pilares.
Em sua trajetória, tem sido também exemplar no reposicionamento de nós mulheres negras perante nós e perante os outros. Em 1982, seis anos antes da fundação de Geledés, Sueli Carneiro teve um encontro com Abdias do Nascimento no Tribunal Bertha Lutz. Um episódio que nos ajuda a dimensionar a importância deste momento. Como registrado pela biógrafa Bianca Santana, naquela ocasião, Abdias era a única pessoa negra a compor o júri simulado impulsionado por feministas brancas. Sueli era uma das poucas mulheres negras na audiência.
Fazendo uma rápida leitura do cenário, Abdias inicia sua fala desajustando a normalidade da ausência feminina negra: “Tendo em vista que não há nenhuma mulher negra neste júri simulado; tendo em vista que as minhas irmãs não estão aqui representadas, eu, neste momento, me faço cavalo de todas as minhas ancestrais e peço a elas que se incorporem e me iluminem. Porque nós, mulheres negras…”
Sueli Carneiro ficou impactada por aquela cena. Ao final, agradeceu a Abdias por dizer o que precisava ser dito. Mas arrematou de maneira inspirada:
“Eu prometo que o senhor não vai precisar fazer isso de novo. Não que não seja uma honra ser representada, mas o senhor não vai mais precisar nos representar. Porque nós vamos chegar”.
E sim, hoje e mais uma vez, nós chegamos com ela!
Obrigada, Doutora Sueli Carneiro por tanto e por sempre! Sua sabedoria, constância e coerência são um grandioso exemplo que a Universidade de Brasília tem a oferecer como medida para toda a nossa comunidade acadêmica!
Axé! Kolofé! Saravá, Motumbá, Mukuiu, Mojubá, Axé!
Ana Flávia Magalhães Pinto – Professora do Departamento de História – UnB, integrante da Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros e coordenadora Regional Centro-Oeste do GT Emancipações e Pós-Abolição – Anpuh.
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