De Billie Holliday a MC Soffia, passando por Clementina, Elza e Beyoncé, o Essência preparou uma trilha de empoderamento negro para comemorar o 13 de maio
Do O Hoje
Reza a lenda que a Princesa Isabel, munida de uma pena mágica, assinou uma lei que abolia a escravidão no Brasil, livrando o País de séculos da vergonhosa situação que forçava cidadãos livres a saírem de sua pátria e viver e trabalhar forçosamente. Conta-se ainda que, com este gesto, começava uma nova era no Brasil, quando todos seriam respeitados e ninguém seria discriminado por cor da pele, raça ou credo. Só nos livros escolares, este cenário se deu como real. Por aqui, o que se viu e o que se vê, ainda hoje, é discriminação e preconceito racial. Contra o fel do racismo, o Essência preparou uma lista que mostra, em canções de mulheres negras poderosas, que preconceito é burrice, que é crime, e que mata todo dia. As divas listadas exaltam também a cultura negra em cores, sabores e ritmos. Confira abaixo.
Billie Holliday, Strange Fruit – Considerada a primeira canção de protesto explícito contra o racismo e o linchamento de negros no Sul dos Estados Unidos, ela é um poema metafórico que ilustra o modo como os negros eram mortos e exibidos ao público: pendurados em galhos de árvores, como “frutos estranhos”. A canção assinalou a carreira de Billie com um ‘x’ de maldição, em plena era de luta pelos direitos civis, em 1939. Perseguida e censurada, ela acabou por definhar em drogas e miséria, mas seu canto se fez ouvir mais forte.
Nina Simone, Mississipi Goddam! – Escrita e interpretada com fúria por Nina Simone, a canção tornou-se um hino ativista da causa negra, e fala sobre o assassinato de quatro crianças negras numa igreja de Birmingham no estado do Alabama em 1963. Com um palavrão logo no título (goddam soa como “porra”, em livre tradução) a canção embalou a luta racial nos EUA: “Alabama me deixou tão chateada, Tennessee de me fez perder a minha paz, e todo mundo sabe sobre a Mississippi, porra”. Nina foi perseguida, mas não conseguiram calar a deusa negra do jazz.
Clementina de Jesus, Rainha Negra – Clementina representa a voz africana do samba. Esta carioca, que trabalhou por anos como empregada doméstica, somente aos 63 anos iniciou sua carreira artística. Foi descoberta pelo poeta Hermínio Bello de Carvalho, e cantou o samba negro, os cantos que cresceu ouvindo de sua mãe que fora escrava. Em Rainha Negra ela saúda os deuses negros que foram cultuados na clandestinidade por africanos escravizados no Brasil, além de cantar a dor destas pessoas: “O escuro do negreiro, O açoite pardo do feitor, E um clarão enganador: A liberdade sonhada ainda não chegou”.
Ivone Lara, Sorriso Negro – A sambista foi a primeira mulher a ter um samba-enredo cantado na avenida no Brasil. Como se não bastasse, mulher negra, pobre, imersa em reduto machista e de preconceitos. Mas Dona Ivone Lara venceu todos eles, com voz mansa e andar macio, embora se impondo pela graça de suas músicas e o talento que comprovou na raça. Sorriso Negro foi um presente dos amigos Jorge Portela e Adilson Barbado para gravar no álbum da cantora de 1981, que recebeu este título. Verdadeira música de afirmação e de combate ao racismo, confirma entre seus versos: “Negro é a raiz da liberdade”.
Miriam Makeba, Africa Is Where My Heart Lies – Conhecida mundialmente por hits como Pata Pata, Makeba era como Mama África. A cantora marcou presença no cenário internacional por suas músicas inspirados nos blues americanos e nos ritmos da África do Sul. Teve forte participação na luta contra o Apartheid do país, chegando a ter seu passaporte e nacionalidade sul-africana cassados pelo governo no começo da década de 1970. Nesta bela canção, ela exalta as belezas do continente africano e de seus cidadãos.
Sandra de Sá, Olhos Coloridos – A cantora surgiu no embalo da soul música brasileira, capitaneada por Tim Maia, e que contava ainda com Cassiano, Hyldon e Lady Zu. Com sua voz rascante e interpretação visceral, era chamada por Cazuza de “a nossa Billie Holiday”. As atitudes de Sandra dentro e fora do palco sempre foram indissociáveis, exemplo de artista que se entrega ao ofício e vive a vida em cada música. Olhos Coloridos encontrou a intérprete perfeita em Sandra. Essa música de Macau, lançada em 1982, tornou-se emblema e manifesto do orgulho negro, além de um puxão de orelhas aos desavisados. “Todo brasileiro tem sangue crioulo”, avisa antes de entrar no refrão que exalta o cabelo sarará.
Elza Soares, A Carne – “Percebi o racismo com porta batendo na minha cara. Não tinha rede social. Aí você se pergunta: mas por que bateram a porta na minha cara? Não fiz nada. Fez, sim. Você nasceu negra. E é assim”, disse uma indignada Elza à em entrevista à EBC, no ano passado. Toda a dor de ser estigmatizada por ser uma mulher negra vem à tona nesta interpretação rascante do rap A Carne, de Marcelo Yuka. Com versos contundentes como “E esse país vai deixando todo mundo preto. E o cabelo esticado”, a música é um hino da luta racial no Brasil dos anos 2000.
Mariene de Castro, A Força que Vem da Raíz – Com participação de Maria Bethânia, Mariene desfia, em música de Roque Ferreira, o rosário de prazeres que suas raízes negras lhe permitem desfrutar, apesar de um passado de escravidão. “Aprendi na senzala a tristeza da rima do chicote que estala e reduz à ruína. Vi fluir a maldade no peso da argola, chorei a liberdade que estava em Angola. É por isso que o samba me bole no peito. É por isso que a noite me faz tão feliz. É a força que vem da raiz.
Mc Soffia, Menina Pretinha – A caçula da lista tem apenas 12 anos, mas já manda seu recado em rimas que falam de empoderamento, de valorização da estética negra e contra o racismo. Em Menina Pretinha, ela reforça a veia de contestação do racismo do seu trabalho, perguntando: “Minhas bonecas pretas, o que fizeram com elas?” Ela falou à revista Rolling Stone sobre a letra. “As pessoas costumam falar que as mulheres negras têm uma beleza exótica, mas isso não é um elogio. Eu sei que exótico é bicho. Então, eles querem dizer que as mulheres são bichos?”
Beyoncé, Formation – Faltava o mais recente soco no estômago em forma de música, não é? Não falta mais. Primeiro single do álbum Lemonade, lançado neste ano, Formation traz Beyoncé mais política e mais negra, na estética e nos versos. “Eu gosto do cabelo da minha filha, com o cabelo de bebê afro. Eu gosto do meu nariz de negro como o do Jackson Five”. E no clipe, gravado em Nova Orleans, cidade americana berço da cultura negra local, ela provoca até a polícia, com mensagens como “parem de atirar em nós,” em relação ao assassinato de jovens negros pela polícia.