E a favela venceu… Será?

Um dos slogans mais ouvidos ultimamente, tal qual um mantra, é a frase “A favela venceu”, sendo usado e abusado para se referir a uma predominância nas grandes mídias de manifestações culturais relacionadas a estes espaços urbanos, e práticas de sobrevivências sociais perante as dificuldades da vida, em especial por uma sociedade passando por grave crise econômica e política que afeta diretamente o cotidiano de suas populações mais carentes e vulneráveis. Sendo o uso do termo repetido como forma de atestar não como demonstração da realidade perversa ao qual hoje nos encontramos inseridos, mas sim como amostra de que vivemos em uma época de “oportunidades para todos”, que “só não vence quem não quer”, que só fracassa aqueles que “se deixam abalar ou derrotar pelos percalços e desafios”. 

Um discurso alienante e preconceituoso que isenta toda e qualquer crítica ao modelo civilizatório ao qual estamos inseridos, assim como elimina toda e qualquer forma de reivindicação aos poderes públicos (Estado) pela superação das nossas misérias e falta de direitos básicos. É a negação da prática cidadã, da noção de sociedade e sociabilidades orgânicas, substituída por ações individualistas, em meio a um sistema que existe e se reproduz pelas dores e sofrimentos destes, que buscam se reinventar a todo instante e momento para serem um “vencedor”…  Isso quando não ocorre a incorporação de um discurso messiânico, salvacionista, de que o sofrimento aqui vivido faz parte de um plano divino para testar sua fé e obediência “as vontades de Deus”, sendo que sua alma já está reservada ao Paraíso, caso você aguente resignado e cordato as agruras a que você será exposto, como se fosse necessário “dilacerar a carne, para salvar a alma”, sem questionar ou afrontar as situações adversas que se apresentam. Discursos aparentemente difusos, mas que se alinham e retroalimentam em culpabilizar as próprias vítimas por sua condição de exploração ou miserabilidade. 

Em outras palavras, vivemos em uma Idade Média tropical, em que ideologias conservadoras como o “Empreendedorismo da necessidade” e a “Teologia da prosperidade”, são utilizadas para dar novo verniz e sentido aos estereótipos de “vagabundagem” e de “párias” sempre atrelados as populações pobres no Brasil, por nossas pretensas elites em seu jogo de poder de sempre culpar os socialmente menos favorecidos pelos seus próprios infortúnios. Enquanto gere as benécias da sociedade, os aparelhos do Estado de acordo com os seus interesses e visando o bem aos seus. 

Desemprego recorde, queda de poderio financeiro, inflação descontrolada, mas a culpa é do “povo” que só reclama e não quer saber de trabalhar! Quem nunca ouviu esse tipo de comentário? Por vezes de pessoas que se encontram em situações de precariedade social? E a favela venceu?

Direitos trabalhistas retirados, seguridade social cada vez menor e ineficaz, e temos como consequência o aumento da discursiva de que: “só sofre quem não possuí fé ‘verdadeira’’, ou por incapacidade de ‘não saber aproveitar as oportunidades’ que se apresentam a quem não desiste”…  E a favela venceu?

Canções que louvam e enaltecem o consumismo extremado como símbolo de sucesso e poder, ressaltando individualismo, machismo e homofobia em suas letras, são cada vez mais comuns. Produzidas e divulgadas por um Mercado que se alimenta da alienação gerada por esta circulação de valores, como se fossem o retrato exato dos jovens que habitam as favelas, as periferias do nosso país! Enquanto isso, perseguição, falta de apoio e de divulgação as canções e manifestações culturais que se opõe a essa realidade de miséria e fome. E a favela venceu?

Brasil, o país de maior violência e morte contra as mulheres e população LGBTQIA+, mas tal realidade é negada, ou sua ocorrência se faz enquanto culpa das suas vítimas que “não se dão ao respeito”, nem seguem “os valores tradicionais da família brasileira”. E a favela venceu?

Reforma do Ensino Médio – obrigatório apenas as redes públicas – aprovada e implementada sem participação efetiva de quem vive (estudantes e professores) diretamente a realidade da escola pública no Brasil, visando – pretensamente – melhorar a educação nacional, mas de fato objetivando o ingresso mais rápido das populações carentes ao mercado de trabalho. Como se aos filhos dos pobres só fosse reservado esse destino. Num momento, não por acaso, em que ocorre uma diminuição no número de inscritos ao ENEM e que se diminuí o alcance as políticas de inclusão estudantil universitária. E a favela venceu?

Racismo e violência racial escancarados! Ataques e invasões a aldeias, quilombos, comunidades caiçaras e assentamentos do MST. Assassinatos de lideranças indígenas e quilombolas, práticas racistas e violências policiais gravadas aos montes nos últimos anos. Ações que vão contra nosso ideário de pátria símbolo da democracia racial e harmonia social, mas que acabam naturalizadas e estimuladas como normais pelos setores dominantes de nossa sociedade! E a favela venceu?

Terreiros de candomblé e casas de umbanda, assim como os seus adeptos, sofrem ataquem sistemáticos de traficantes, milicianos, grupos religiosos fundamentalistas e policiais. Sendo expulsos das comunidades – inclusive quebradas e favelas – em que sempre se encontraram e se fizeram culturais e politicamente ativos. Tudo em nome e pela honra de Deus! Tudo justificado por uma pseudo guerra santa em que os valores cristãos estão em risco pela “macumbaria” e intolerância ao cristianismo. E a favela venceu? 

A velha sanha da intelectualidade institucional brasileira, que se mostra incansável em sua busca por definir e, pretensamente, legitimar o “pensar negro”, o “ser negro” e o “agir negro”. Sempre por um discurso afirmativo de dominância científica e moral, contra a “emoção e irracionalidade” da intelectualidade negra. Deslegitimando toda e qualquer voz em contrário. Na prática considerando os negros enquanto não portadores de sapiência, incapazes de burilar e desenvolver saberes próprios, tendo por isso suas narrativas e discursivas ignoradas ou desvalorizadas, numa constante diária de reafirmação de nossa herança escravocrata, portanto racista, que associa os sujeitos negros enquanto “coisas” ou “força bruta encarnada”, intelectual e emocionalmente desprovidos de faculdades civilizatórias. E a favela venceu?

Comunidades periféricas, quebradas e favelas relegadas a própria sorte durante a pandemia COVID-19, conseguindo cuidar dos seus habitantes através da preservação de laços culturais e de sociabilidades de origem afro-brasileiras. Laços ancestrais que perduram por séculos, décadas e constituem alicerces que os mantem vivos os que historicamente já não eram mais para aqui estar, se o processo de arianização (embranquecimento) da população brasileira fosse consumada, como era o desejo expresso e, publicamente, manifesto de nossas elites entre final do século XIX, por todo século XX e ainda presente aos dias de hoje. Todo um conjunto de historicidades que são ignoradas e substituídas em suas potencialidades e concretudes transformadoras em troca de um discurso valorativo de ações sociais de empresas “socialmente compromissadas e empenhadas” em mandar a “pobreza” para o espaço, desde que isso não modifique um nada da estrutura do sistema de exclusão e segregação vigente. Um ideário incutido e estimulado as populações em miserabilidade, de submissão e agradecimento as “bondades” que lhes são destinadas! E a favela venceu?

“Feminismo sertanejo” louvado como um movimento artístico que pela primeira vez empodera as mulheres na história da música popular brasileira. Marília Mendonça foi contextualizada e valorizada enquanto pertencente a esta coletividade. Elza Soares foi louvada e reverenciada enquanto fenômeno, uma exceção entre a regra, “gênio da raça”. Mas não foi contextualizada enquanto pertencente e resultante de uma linhagem de cunho artístico-cultural-religioso de intérpretes e autoras – tais quais Clementina de Jesus, Dona Ivone Lara, Alcione, Leci Brandão, Jovelina Pérola Negra – que debatem e cantam por décadas as nuances e características do universo feminino, assim como da negritude e antirracismo. Apagamento histórico de todo um legado ancestral de lutas e reivindicações de mulheres negras enquanto artífices da chamada cultura popular brasileira. E a favela venceu?

Brasil, um país em que a população revira lixo, briga e esperneia para – literalmente – roer ossos. E isso é contextualizado enquanto exemplo do “espírito empreendedor” do povo brasileiro que não aceita se deixar derrotar pelas dificuldades da vida! Isso quando não surgem os comentários de internet do tipo “é melhor comer osso/lixo que morrer de fome”! E a favela, venceu?

Explosão de pessoas, famílias vivendo nas ruas. Miséria cada vez maior e mais abrangente, afetando diretamente a paisagem urbana e os cotidianos da maior cidade da América do Sul. Com as autoridades da cidade de São Paulo não sabendo como intervir para mudar, ou ao menos amenizar essa situação, em que mais de 70% da população é preta o parda, excluídas de nossa formalidade cidadã, a olhos vistos, nas ruas e praças as quais margeamos. E a favela, venceu?

Grupos neonazistas e de supremacistas brancos – ou daqueles que se consideram como tais – se espalham pelo país, inclusive em favelas e comunidades, com a proliferação de discursos de ódio e intolerância, de extermínio das “raças impuras e inferiores” como forma de salvar e civilizar de fato o Brasil. Inclusive, nessa grande incongruência contraditória em que habitamos, com grande presença de negros e pardos em suas fileiras, que apregoam e botam em prática um ideário que visa em muitos dos casos a sua própria destruição. E a favela venceu?

Mas que vitória é essa que se baseia no silêncio e omissão ante as agruras de um sistema que apregoa o caos e a morte? Que advoga o individualismo e o egoísmo? Que vitória é essa que se preza em não combater e nem se posicionar de fato contra o racismo, machismo e homofobia? Que convive e naturaliza preconceitos? Que vive em harmonia, “de boa” com a intolerância? Mas que se revela implacável com as vítimas de uma sociedade de ódio e exclusão? E a favela venceu?  

A alienação do explorado é a suprema felicidade do explorador! A realidade se revela a quem de fato quer encará-la. Entre a ilusão ou a má fé, em meio a sonhos e frustações, nos surge a dúvida e o assombro acerca da percepção propagada de que a favela venceu?  Pois, se isso é vitória, fico imaginando, temeroso, o que será a derrota… 


Christian Ribeiro, mestre em Urbanismo, professor de Sociologia da SEDUC-SP, doutorando em Sociologia pelo IFCH-UNICAMP, pesquisador das áreas de negritudes, movimentos negros e pensamento negro no Brasil.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

+ sobre o tema

Uma história negra com certeza: a escrita histórica nos jornais negros paulistanos

No ensolarado sábado de 24 de outubro de 2020,...

Confluências astronômicas: reelaborando a Astronomia com Nêgo Bispo

Eu me sentia estranha ao escrever e falar sobre...

Escola e Direitos Humanos

A prefeitura de São Paulo sancionou, na última semana,...

para lembrar

Albinismo e relações raciais: Subjetividade, pertencimento e aspectos sociais

Albinismo é uma alteração genética hereditária, causada por gene...

Miguel Otávio: não foi acidente, não foi tragédia. racismo mata!

É 2020. Estamos na primeira semana de Junho, em...

Protagonismo feminino e economia solidária na África contemporânea

Com frequência, mulheres africanas têm liderado encontros internacionais, com...

A mulher negra no mercado de trabalho

O universo do trabalho vem sofrendo significativas mudanças no que tange a sua organização, estrutura produtiva e relações hierárquicas. Essa transição está sob forte...

Escrito em Nego

Quando buscaram os Negros na África, trazendo-os como bichos amontoados em uma nau, ignorando suas paixões, estórias e a própria raiz ancestral, Foi escrito em negro e...

Será que eu sou uma fraude? A mestiçagem e o meu não lugar

A vida inteira fui chamada de branquinha pelo meu pai e era assim que eu me via, apesar dos constantes comentários acerca do meu...
-+=