O cinema do século XX e as religiões afro-brasileiras

As religiões afro-brasileiras, na maioria das vezes, são compreendidas de forma inadequada pelo cinema brasileiro. Segundo Guimarães (2019) e Ferreira (2020), essa questão pelo caráter de universalidade exercitado pelo pensamento branco em nossa sociedade, consequência dos mais de 300 anos de escravização negra no país, além do sistema patriarcal. Assim, este ensaio tem por objetivo refletir os efeitos dessa suposta universalidade do discurso hegemônico no meio cinematográfico, através de sucinta análise sobre como as religiões afro-brasileiras, e os terreiros, são vistos por esse campo.

Com a presença colonial dos portugueses em terras brasileiras desde o final do século XV, e os mais de 300 anos de escravização dos corpos negros, difundiu-se pelo país a ideia de que a cultura e o pensamento branco era o único conhecimento confiável. Dessa forma, iniciou-se o processo de “demonização” das culturas dos outros povos que compunham o que hoje conhecemos por Brasil, creditando-as como inválidas. Segundo a teórica Grada Kilomba (2019), essa hegemonia está presente nos estudos acadêmicos através do “mito da universalidade” que, por sua vez, diz respeito à profunda relação entre a produção de conhecimento dito “válido” e o poder racial, já que, nos lugares de alta posição dentro da formação cultural, como diretores de cinema, é evidente a maior presença da branquitude.

Dessa forma, cria-se em território nacional uma forma nociva de se observar as religiões afro-brasileiras e os terreiros pelo cinema, recaindo sobre estereótipos racistas ao representá-los, além de analisá-los de forma superficial, já que os cineastas não se preocupavam em conhecer de fato aquilo que filmava. Como aponta Guimarães, “Makota Valdina denunciou o quanto fizeram mal ao povo de santo as imagens produzidas sobre os terreiros, pois várias delas desrespeitaram a humanidade dos seus integrantes e frequentadores” (2019, p. 25). Na segunda metade do século XX, mais especificamente nos anos 1960, devido às ameaças da ditadura militar, os movimentos de esquerda do país tentaram, através do chamado Cinema Novo, que possuía um caráter mais sociopolítico de abordagem, reformular a noção de cultura nacional, apontando como fonte de alienação do povo “o futebol, o samba e o candomblé” (FERREIRA, 2020, p. 97), ou seja, filmes como Cinco vezes favela (1962) de Diegues et al transmitiam para a sociedade a ideia de que religiões como o candomblé, ao colocarem seus seguidores em transe, também os colocariam em um lugar de negação da realidade, o que é uma inverdade, visto que os terreiros sempre foram espaços de resistência.

Por outro lado, filmes que fizeram parte da “Renascença Baiana” como Barravento (1962) de Glauber Rocha, ao se colocarem entre a visão marxista e um singelo olhar otimista sobre as religiões de matrizes africanas (FERREIRA, 2020), já evidenciavam que estava por vir uma alteração nas produções cinematográficas sobre o tema.

Para Ceiça Ferreira (2020) foi durante os anos 1970 que essa alteração passou a surgir efetivamente. Visto que a tentativa de ir contra aquilo que era popular não foi bem sucedida, os cineastas começaram a observar com respeito o caráter contra-hegemônico existente nos terreiros. Resistentes a séculos de opressão e com suas tradições focadas na coletividade, as religiões afro-brasileiras se tornaram símbolos cinematográficos da luta antiditatorial e anticapitalista, como forma de reafirmação de uma identidade nacional popular – e negra.

O surgimento do Movimento Negro Unificado, em 1978, fez com que os discursos sobre negritude se tornassem mais evidenciados na sociedade. Iniciando na transmissão oral, passando para o meio acadêmico e ecoando nas artes visuais, a década seguinte (anos 1980) foi fundamental para a afirmação das religiões afro-brasileiras como componentes essenciais da identidade nacional, através da presença de talentos negros na produção de filmes e documentários. Conforme a indagação realizada por Guimarães:

“Se os povos de matriz africana já foram figurados (no documentário e na ficção), de diferentes maneiras, dando a ver – em meio a preconceitos e visões distorcidas – seus modos de vida e práticas rituais, podemos perguntar pelas novas modalidades de figuração possíveis atualmente, quando as comunidades tradicionais afrodescendentes tornam-se protagonistas dos discursos de emancipação e assumem, sob diversas formas, sua auto-representação.” (GUIMARÃES, 2019, p. 28)

É nesta nova perspectiva que foi produzido Ôrí (1989), com direção da socióloga Raquel Gerber e roteiro da história Maria Beatriz Nascimento. Buscando reafirmar as religiões afro-brasileiras como territórios negros (FERREIRA, 2020), o documentário utiliza de algumas características essenciais dessas religiosidades para abordar as questões impostas. Em primeiro lugar, o princípio da oralidade, tão importante para difundir os valores desses cultos através dos séculos, se faz presente na narração de Nascimento, conduzindo-nos pela experiência. Em seguida, a não-centralidade existente nos terreiros aparece quando notamos que embora esteja falando sobre a identidade negra, o documentário não possui um protagonismo evidente. Essa característica também se conecta com a prática comunitária, uma vez que somos expostos a diversos espaços de construção coletiva, como as palestras e discursos. Além disso, reforça o significado de axé como força vital de tudo que existe, ao colocar os terreiros, as escolas de samba, os bailes blacks e as reuniões do MNU como quilombos modernos. O próprio nome dado documentário está intrinsecamente conectado com as religiões afro-brasileiras, uma vez que seu significado é “fazer a cabeça” dentro do terreiro durante a iniciação, ou, como demostra o tema percorrido, o início do movimento negro. Por fim, a obra ainda carrega em si o princípio da circularidade, ou seja, não há um clímax, tanto o começo quanto o seu fim pensam.

Ao propor uma reflexão sobre a presença das religiões afro-brasileiras no cinema nacional, foi possível compreender que ela é marcada por diferentes atos. Primeiramente, a vasta maioria das vezes em que apareciam, era através de alusões de um racismo religioso, carregado de estereótipos degradantes. Em seguida, foi apresentada uma visão que as categorizavam como alienantes, questão que foi rapidamente substituída por uma dualidade entre reconhecer seu lugar de resistência mas ainda creditando-as como capazes de “cegar” a população”. Ao fim, embora não tenha sido possível explorar toda a grandiosidade de Ôrí (1989), observamos que a presença de pessoas negras feitas nos terreiros gera uma visão mais profunda sobre o lugar dessas religiões dentro da forma de observar tanto a sociedade quanto a própria forma de pensar a produção cinematográfica.

REFERÊNCIAS

FERREIRA, Ceiça. 2020. “Corpos e territórios negros: representações da religiosidade afro-brasileira no documentário Orí (1989)”. Cuadernos de Música, Artes Visuales y Artes Escénicas 15 (1): 94-110.

GERBER, Raquel (Dir.). Ori. (1989) São Paulo, Angra filmes. 90 min.

GUIMARÃES, César – “Filmar os terreiros, ontem e hoje”. In: Revista Perspectivas em Ciência da Informação, v.24, 2019. Disponível em: http://portaldeperiodicos.eci.ufmg.br/index.php/pci/article/view/3891

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação. Episódios de racismo cotidiano, cap.2 “Quem pode falar?”. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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