É coisa de preta: reexistência calunga

Os impactos da violência e, consequentemente, da mortalidade da população negra, ainda que não receba atenção suficiente da grande mídia, assim como, não é considerada nos processos de decisão sobre a segurança pública e nem por boa parte da população, é pautado, na maioria das vezes, a partir das agressões às quais estão submetidos, principalmente, os jovens negros que são os mais afetados pelo genocídio. Como nos lembra Jackeline Romio em sua dissertação de mestrado, pouco se fala das violências que também custam caro à vida das mulheres negras. Além disso, no que diz respeito à discussão sobre o extermínio dessa população de jovens negros, são raros os momentos que é reconhecido o protagonismo das mulheres negras enquanto agentes fundamentais na luta pela vida: mães, amigas, irmãs, tias, avós, companheiras, entre outras que, mesmo “derrotadas” pela perda de pessoas próximas, nunca pararam de lutar. Expostas à violência racista e heterossexista, há tempos, mulheres como essas vêm criando formas diversas de combater as violências cotidianas que nos ensinam muito em termos de organização social e política. Essas tecnologias de reinvenção do cotidiano tem de ser revisitadas por nós e explicitadas, pois, como apontou Rosane Borges em palestra recente, aquilo que não aparece é tratado como se não existisse.

Isso que eu digo aqui não é nada novo. Além de fazer parte do cotidiano da população negra e de ser característico do que Patrícia Hill Collins chama de uma “cultura de mulheres negras” (Cf. Patrícia Hill Collins. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. In: Revista Sociedade e Estado, vol. 31. 2016.), a elaboração dessas estratégias de reexistência numa sociedade que nem era para essas pessoas existirem, foram relatadas e registradas por muitas de nós e estão impressas na nossa cultura, nos nossos valores que vêm sendo transmitidos de geração em geração e expressos por meio das nossas músicas, da literatura, das religiões de matriz africana, das organizações políticas pretas que tiveram papel crucial em diversos momentos da história do Brasil, nos nossos quilombos, sejam eles urbanos ou rurais, nos trabalhos acadêmicos daquelas e daqueles que contrariam as estatísticas e adentram as universidades brasileiras, como também, na vitalidade em seguir em frente daquelas que se reinventam todos os dias pela manhã quando levantam para trabalhar e encarar um ônibus lotado. Experiências repletas de vidas lições que desestabilizam as lógicas hegemônicas estruturantes das maneiras de pensar. Formas de existir que propõem um novo pacto de humanidade, no qual, a população negra seja vista como gente e caiba na categoria de humanos.

Desde que insistem em fazer da liberdade um fardo para nós, as mulheres negras têm tido contribuições importantes que reafirmam a politização do nosso cotidiano e dos nossos corpos. Poderia resgatar um número considerável dessas práticas presentes desde daquilo que que James Scott chama de discursos ocultos (Cf. James Scott. A dominação e arte da resistência: discursos ocultos. Lisboa: Letra Livre, 2013.), até os marcos que mudaram o curso da grande política brasileira. Entretanto, devido ao momento escolherei um exemplo capaz de retratar, pelo menos um pouco, das potências do movimento de mulheres negras que tem resultado em frutos que estão sendo colhidos coletivamente dentro e fora da comunidade da nossa comunidade. Se formos fazer uma breve análise do histórico do movimento “organizado” mulheres negras nos últimos 50 anos, é notável, por exemplo, o papel dessas mulheres nos processos de redemocratização do país. Além das organizações de bairro, das pastorais negras e da participação expressiva das mulheres pretas em organizações como o Movimento Negro Unificado, assim como nos sindicatos e etc., da década de 1970 e até os anos 2000, tivemos a fundação de instituições  que contribuíram de maneira indispensável para aumentar a potência dos nossos gritos contra o racismo (como Geledés – Instituto da Mulher Negra, Criola, etc.), às violências exercidas sobre as vidas negras e pela reivindicação de uma cidadania na qual não fossemos tratados como um grupo de segunda classe (Cf. Núbia Regina Moreira. A organização das feministas negras no Brasil. Vitória da Conquista: Edições UESB, 2011).

Esses arranjos que configuraram e acabaram informando boa parte da dinâmica das organizações de mulheres negras no Brasil somados ao que estou chamando de políticas do cotidiano atravessadas por discursos políticos ocultos, deu base para que essas essas mulheres tivessem papel central, pelo menos nos últimos 20 anos, na difusão e ampliação das pautas do movimento negro, do movimento feminista e, também, do movimento pelos direitos humanos, como nos lembra Jurema Werneck (Cf. Jurema Werneck. Of Ialodês and Feminists: Reflexions on Black Women’s Politican Action in Latin America and the Caribbean. Cultural Dinamics, vol 19, n.1, 2007). Recentemente, eu tive a oportunidade assistir Sueli Carneiro, em palestra recente, fazendo um balanço sobre a trajetória de militância de boa parte das mulheres de sua geração. Foi muito interessante, pois, ao fazer uma autocrítica e reconhecer que a institucionalização da luta contra o racismo e o sexismo na configuração de ONG’s, por mais importante que tenha sido e seja, acabou não tendo condições de olhar com a atenção suficiente para parte da agenda do movimento negro e de mulheres negras. É de se entender a colocação de Sueli Carneiro em relação ao cumprimento de uma agenda política, mas não posso deixar de reafirmar o que nós já sabemos: dar conta de tudo que diz respeito à nossas lutas é difícil, pois o mundo é muito pesado para carregarmos sozinhas nas nossas costas. Entretanto, ao ressaltar a necessidade constante de capilarização da luta contra o racismo e o sexismo, a filósofa apontou para novos desafios que estão colocados para a  juventude negra como o fortalecimento do embate contra uma cultura autoritária e fascista, que têm tomado cada vez mais ressonância através de discursos de ódio e de violência. Sueli Carneiro ressaltou, também, algo que tem tido papel fundamental nos últimos dez anos e que, com outra cara, tem dado continuidade à produção de outras narrativas sobre as mulheres negras e sua história: a organização de negras jovens ao longo de todo Brasil que têm questionado e desestabilizado a ordem branca das coisas. Esse apontamento é essencial para entendermos a  importância das lutas que nossas mais velhas têm empreendido e as vitórias que elas geraram e que a minha geração, por exemplo, vem usufruindo. Digo isso, pois, crescer e sermos criadas numa sociedade em que, em vez de uma ou nenhuma, é possível ver no horizonte algumas possibilidades que eram quase inimagináveis para o nosso povo, tornou possível a formação de subjetividades que tem a disposição um pouco mais de recursos para lidar com os traumas que a escravidão e o racismo têm nos colocado ao longo do tempo. Território fértil para que continuemos a nos apropriar dos saberes produzidos pelas mulheres da nossa comunidade, como tem me lembrado Marilea Almeida em conversas aconchegantes, e que têm sido pilares para que possamos reformular as nossas formas de aprender, de ensinar e dos relacionar com os nossos corpos e as violências que os afetam, como aponta Bell Hooks (Cf. Ensinando a Transgredir: educação como prática da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2017).

Se, por exemplo, observarmos como alguns debates têm questionado a pauta e a agenda dos movimentos sociais que ainda têm se constituído, basicamente, a partir de experiências particulares que não dizem respeito à realidade da maioria da população e que se preocupam, exclusivamente, em defender o direito de brancas e brancos, a organização das mulheres negras no Brasil e suas ressonâncias, têm democratizado, ampliado e visibilizado a pauta do movimento feminista, assim como, também, da luta antirracista encabeçada pelo movimento negro. De uma geração marcada pela institucionalização do movimento de mulheres e também da efervescência dos grupos que optaram em manter uma militância fora do campo institucional, chegamos em um período em que pipocam coletivos de jovens negras que além de dar continuidade a luta, têm divulgado, feito campanha e, também, sido responsável por essas ideias terem alcançado uma parcela considerável da sociedade brasileira. Basta uma breve pesquisa na internet para encontrarmos saraus das pretas, festas com a proposta de afrontamento aos padrões morais e estéticos brancos e heteronormativos, blogs, grupos de pesquisas e leituras sobre o trabalho das intelectuais negras, intelectuais públicas, assim como, artistas que tem trazido tratado da condição da mulher negra nas suas composições, entre outras iniciativas. Só em Campinas, por exemplo, temos realizações como a Frente de Mulheres Negras de Campinas e Região, Sarau das Aliadas, Rolê das Pretas, Coletivo – Feminismo Interseccional Lélia Gonzalez, Grupo de Estudos Sobre Feminismos Negros, Sindicato das Empregadas Domésticas de Campinas, entre outras iniciativas. Sem contar que durante esse ano, a exemplo de 2015 e 2016, foi dada continuidade, em diversas regiões do Brasil, às propostas que surgiram a partir das ressonâncias da Marcha de Mulheres Negras que ocorreu, exatamente, há dois anos atrás, como, por exemplo, a realização do II Encontro Nacional de Negras Jovens Feministas que resultou na fundação da Articulação Nacional de Negras Jovens Feministas e, aqui em Campinas, o Encontro de Jovens Negras de Campinas e Região que irá ocorrer no mês de dezembro de 2017.

Fazendo um contraponto ao discurso da carência e da falta pela qual são acessadas as experiências de mulheres negras, sem deixar de reconhecer o impacto da violência sobre nossos corpos, são múltiplas as experiências que exemplificam as nossas potências. Entretanto, como nos lembra Patrícia Hill Collins, “quando se trata trabalho da justiça social, o verdadeiro teste não se encontra na forma como celebramos vitórias, mas sim como nós respondemos a derrota” (Cf. Patrícia Hill Collins. Nós que lutamos pela liberdade não podemos descansar: lições do feminismo negro norte-americano. In: PINTO, Ana Flávia Magalhães; DECHEN, Chaia; FERNANDES, Jaqueline. Griôs da diásporas negra. Brasília: Griô 2017). Se realmente buscamos a liberdade e temos pretensão de colocar a abaixo as estruturas que orientam a organização dessa sociedade que nos exclui e insiste em nos anular enquanto sujeitos, temos que nos inspirar nas mulheres que mesmo quando têm perdas profundas nunca param de lutar porque continuam levando a vida com leveza. Nossa luta só é possível pois, a importância das nossas vidas foram preocupações pessoais e profundamente políticas das nossas mães, das nossas irmãs, das avós e das nossas famílias. São essas mulheres que pelo simples fato de ter fé na vida tornaram tudo isso possível e nos ensinam todo dia a ampliar e reformular as nossas concepções de luta, ativismo, resistência e existência. O impulso da luta constante pela liberdade tem como berço essa realidade, implícita nos labirintos pelos quais, nossas mais velhas têm caminhado devagar, mas firmemente, ao longo da história da América Latina e do Caribe nos ensinado a ser advogadas de nós mesmas.

*Taina Aparecida Silva Santos é feminista negra e militante dos movimento negro e de mulheres negras. É estudante de História no IFCH/Unicamp e, atualmente, desenvolve um estudo no qual analisa as relações entre raça e gênero no mundo do trabalho livre durante a segunda metade do século XIX.

***Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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