Maria-Noel Vaeza, diretora regional da ONU Mulheres para as Américas e o Caribe, foi uma das convidadas de Geledés para o evento “Abordando o racismo como uma questão central na agenda global para o futuro”, promovido no mês passado, em Nova York. Após uma viagem ao Haiti, Maria-Noel concedeu esta entrevista exclusiva em que aponta a necessidade de haver reparação aos afrodescendentes. “Na ONU Mulheres acreditamos que é importante reconhecer os séculos de escravização, tráfico e opressão colonial dos afrodescendentes que moldaram e alimentaram o racismo sistêmico e a discriminação racial”, disse ela à reportagem.
Noel também destacou a promoção do desenvolvimento socioeconômico dos afrodescendentes como uma das principais temáticas a serem abordadas. A diretora regional da ONU Mulheres para as Américas e o Caribe ainda apoiou a ideia de criação do Stakeholder Group de Afrodescendentes na ONU, uma iniciativa que está sendo capitaneada por Geledés na organização global.
Maria Noel tem doutorado em Direito e Ciências Sociais pela Universidade da República do Uruguai e mestrado em políticas públicas pela Universidade Johns Hopkins, em Washington DC. Ela ingressou na ONU Mulheres a partir da sede do UNOPS em Copenhagen, na Dinamarca, onde atuou como Diretora do Escritório de Serviços de Portfólio Global, sendo responsável pelos resultados operacionais dos portfólios globais do UNOPS e pelo estabelecimento de alianças estratégicas.
Geledés – Como analisa o impacto do evento “Abordando o racismo como uma questão central na agenda global para o futuro”, promovido por Geledés em Nova York?
O evento de 20 de setembro em Nova York foi decisivo para colocar estrategicamente não só a necessidade de enfrentar o racismo, mas também o reconhecimento da contribuição das mulheres afrodescendentes nas estratégias de desenvolvimento sustentável.
É urgente levar-se em conta as múltiplas interseccionalidades que se cruzam na vida das mulheres e estabelecer objetivos desagregados com ações específicas, especialmente numa região tão rica e diversificada, mas também a mais desigual do planeta, onde os afrodescendentes têm menos chances de ter mobilidade social, pois têm 2,5 vezes mais probabilidades de permanecer na pobreza crônica.
Os afrodescendentes no Caribe, por exemplo, sofrem com o aumento dos desastres ambientais, com as dívidas nacionais e também com as condições de crédito bancárias insustentáveis, tornando-se mais difícil a redução das desigualdades, em linha com o que propõe a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável.
Geledés – Entre os posicionamentos já colocados pela senhora está a necessidade de haver “reparações pela escravização” que, em sua opinião, “deveriam estar na agenda de todos os Estados-Membros das Nações Unidas”. No entanto, existem várias maneiras de se fazer reparações. Qual é a sua visão de reparação para a América Latina e o Caribe?
Na ONU Mulheres acreditamos que é importante reconhecer os séculos de escravização, tráfico e opressão colonial dos afrodescendentes que moldaram e alimentaram o racismo sistêmico e a discriminação racial que persistem até hoje. E, o mais importante, devemos reconhecer o valor e as contribuições dos afrodescendentes para a construção das nossas sociedades e para a promoção do desenvolvimento e de soluções inovadoras.
Devemos, mais do que nunca, demonstrar, a partir de dados desagregados por gênero e raça, insistir em objetivos desagregados quando pensamos em políticas, planos e estratégias nacionais. É essencial, ao discutirmos orçamentos, adotar uma visão interseccional sensível ao gênero, para garantir que as diferentes necessidades das mulheres afrodescendentes sejam priorizadas. É essencial também tomar medidas para mudar as normas sociais que possam desconstruir o racismo e o sexismo. Isso apenas para citar algumas estratégias de reparo.
Sabemos que a experiência de vida de uma mulher branca de classe média não é a mesma de uma mulher negra de classe média, nem é a mesma experiência de vida de uma mulher negra profissional de classe média e de uma mulher negra imigrante e pobre. As diferenças baseadas em raça, em classe social ou mesmo na identidade de gênero conduzem a diversas formas de discriminação e opressão. Temos o desafio de abordar estas diferenças e promover os interesses partilhados por todas as mulheres em toda a sua diversidade.
É hora de quebrar as barreiras discriminatórias contra as mulheres afrodescendentes. Isto implica em um exercício de resistência histórica onde a hierarquia de raça e gênero pode prevalecer nas ferramentas de digitalização. Este é o meu apelo aos Estados-Membros: não podemos continuar a reproduzir a desigualdade, a discriminação e o racismo! É hora de transformar, é hora de igualdade substantiva.
Geledés– Sueli Carneiro, fundadora e coordenadora de Geledés, chama a atenção para a necessidade de haver um programa de desenvolvimento econômico voltado à população afrodescendente como medida de reparação histórica. Ela afirma que o Brasil já promoveu políticas de mobilidade social para imigrantes europeus, financiadas pelo próprio Estado brasileiro. Como você vê essa ideia?
Em geral, estou convencida de que é necessário promover políticas públicas e financeiras que contribuam para a promoção do desenvolvimento socioeconômico dos afrodescendentes. Isto inclui ações para erradicar a fome e a pobreza, o desemprego e a mortalidade materna, que são afetados por diversas formas de racismo, discriminação racial, xenofobia e formas conexas de intolerância. E também, como mencionei antes, que sejam reconhecidos o valor e as contribuições dos afrodescendentes no Brasil.
Geledés – O momento atual é crucial para abordar a omissão histórica das preocupações raciais nas políticas globais e nos objetivos de desenvolvimento. A incapacidade de integrar plenamente uma abordagem inclusiva às preocupações raciais nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e na Agenda 2030 é uma lacuna que não deve persistir. A Cúpula do Futuro oferece uma oportunidade crucial para corrigir este rumo. Quais os pontos mais difíceis para ultrapassar esta situação e quais os caminhos em um futuro próximo?
Na ONU Mulheres estamos convencidos de que a Cúpula do Futuro representa uma oportunidade única para os Estados-Membros da ONU forjarem um novo consenso global sobre compromissos e propostas para um futuro melhor para que não deixem ninguém para trás, especialmente as mulheres e meninas de todas as regiões do mundo, com uma perspectiva de direitos humanos e interseccionalidade.
Celebro o fato de que todos os países da América Latina e do Caribe sejam signatários da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), que obriga os Estados-Membros a implementarem medidas concretas para eliminar qualquer tipo de discriminação contra as mulheres, o que é especialmente relevante no caso das afrodescendentes.
Ao mesmo tempo, os países da região são signatários da Convenção Internacional sobre a Eliminação do Racismo e da Discriminação Racial (CERD). Na Recomendação Geral N.º 25, de 2000, o CERD destaca as “dimensões de gênero da discriminação racial”, indicando quais sejam consideradas as formas de discriminação racial que tenham um impacto único e específico sobre as mulheres.
Em linha com a resolução 68/237 da Assembleia Geral das Nações Unidas sobre a Década Internacional dos Afrodescendentes (2015-2024), a ONU Mulheres apoia os Estados a tomarem medidas concretas e práticas para cumprir os compromissos assumidos na luta contra o racismo, a discriminação racial, a xenofobia e formas relacionadas à intolerância enfrentadas por mulheres afrodescendentes.
Celebro, particularmente, o compromisso e a liderança do Brasil ao propor, por exemplo, o ODS 18 sobre equidade racial. É necessário que tenhamos uma adesão massiva a esta ideia e que mais Estados-Membros da ONU reforcem o ODS 18 e os outros instrumentos reguladores globais sobre a igualdade racial, como o Plano de Ação de Durban. É necessário poder falar sobre a existência e os efeitos do racismo como uma barreira ao desenvolvimento econômico e social. A partir do momento em que se tornar um consenso, poderemos pensar e propor respostas com mais tranquilidade. Respostas, inclusive, com financiamento adequado.
Geledés – As mulheres, especialmente as negras, são as mais afetadas pela crise climática. Contudo, elas não têm papel de liderança na construção de políticas para combatê-la. Como elas podem colaborar de forma mais efetiva e como vê as políticas ambientais para as populações afrodescendentes nas cidades?
As alterações climáticas, a degradação ambiental e as catástrofes têm um impacto desproporcional e diferenciado nas mulheres e nas meninas, especialmente naquelas que enfrentam múltiplas formas de discriminação e desigualdade.
As mulheres que vivem no campo e dependem de recursos naturais para as suas atividades são mais vulneráveis ao aumento da crise climática. Porém, encontramos uma baixa representação dessas mulheres afrodescendentes e ainda das indígenas.
Na América Latina e Caribe, houve uma promoção ativa de um posicionamento e de reflexão sobre as contribuições das mulheres rurais, com a urgência de resolver uma série de problemas de desenvolvimento e de direitos humanos que as estão afetando particularmente. Essa liderança é algo que temos de promover e reforçar com soluções e resultados tangíveis.
Por outro lado, presenciamos os impactos dos desastres ambientais nas cidades. Acompanhei os casos das chuvas no Rio Grande do Sul, por exemplo. Esses impactos afetam desproporcionalmente os bairros mais pobres, onde se concentram os afrodescendentes, em decorrência do racismo que afeta suas condições de vida. E onde estas pessoas têm menos hipóteses de se recuperarem do desastre. Em áreas mais ricas, as pessoas têm seguro de casa, por exemplo.
Geledés – O instituto liderou a iniciativa de criação de um grupo de interesse de afrodescendentes nas Nações Unidas e influenciou significativamente os mecanismos de participação da sociedade civil na ONU. Geledés também desempenhou um papel fundamental na negociação linguística que garante a inclusão de compromissos de combate ao racismo em acordos internacionais. Como você vê a iniciativa da organização em criar um Stakeholder Group para Afrodescendentes?
Estou convencida de que seja necessário fortalecer redes e vínculos de coordenação, apoio e alianças estratégicas entre organizações da sociedade civil, movimentos de mulheres e feministas, universidades e o sistema das Nações Unidas. Gostaria de sublinhar a necessidade de garantir a voz e a liderança coletivas de todas as mulheres e meninas afrodescendentes e a sua participação na tomada de decisões. As iniciativas para fortalecer as redes e a liderança em todos os níveis de tomada de decisão, incluindo-se a ONU, são muito bem-vindas.