E mulheres trans não são pessoas?

Atentados contra a liberdade básica de pessoas trans serem quem são

No mesmo dia, os EUA e o Reino Unido —dois países ocidentais que se colocam como bastiões da liberdade, muito embora até ontem metade do mundo era colonizada pelo segundo e uma parcela da população no primeiro não podia sequer usar o mesmo banheiro que os demais em razão de sua cor— emitiram atos oficiais que atentam profundamente contra a liberdade básica de pessoas trans serem quem são.

Do lado estadunidense, o consulado em São Paulo emitiu um novo visto para a deputada federal Erika Hilton, identificando-a com o gênero masculino. Parece que era outro mundo quando participei, há alguns anos, de um evento daquele consulado em que se exibiu o documentário “Lavender Scare” (2017), que retrata a perseguição contra funcionários públicos LGBTQIA+ durante a Guerra Fria. A história se repete primeiro como tragédia, depois como farsa.

Do lado britânico, a Suprema Corte determinou que a definição de “sexo” na Lei da Igualdade, de 2010, refere-se apenas à categoria de “mulher biológica” e “sexo biológico”, dois termos ultrapassados. Erra aquela corte ao ceder a um lobby organizado e poderoso que busca criar tensões entre mulheres cis e mulhers trans, com o intuito claro de, por meio da transfobia, reduzir o status político de todas as mulheres na sociedade.

A biologização do debate sobre sexo e gênero de nada serve e gera questionamentos sem sentido: homens com baixa testosterona seriam homens?; mulheres cisgêneras inférteis seriam mulheres?; um casal idoso heterossexual pode se casar se não puderem mais ter filhos? Tão absurda quanto esses questionamentos é a exclusão de pessoas trans da proteção legal.

Em 1929, o Privy Council —um conselho privado ligado à monarquia britânica— decidiu que mulheres eram “pessoas” no sentido legal e portanto poderiam ser senadoras. A pergunta que se coloca hoje não é se mulheres trans são mulheres (elas são) nem se elas existem (existem). O imperativo que se impõe é que pessoas trans são pessoas e, portanto, merecem proteção legal.


Thiago Amparo – Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação

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