Em entrevista a Maria Rita Kehl, diretor do documentário ‘Martírio’, Vincent Carelli, fala sobre a resistência dos Guarani-Kayowá
Por Felipe Milanez Do Carta Capital
No dia 13 de abril, estreia em São Paulo o documentário longa-metragem Martírio, dirigido por Vincent Carelli e co-dirigido por Ernesto de Carvalho e Tita. Trata-se de um filme extraordinário, que o Brasil precisa ver e um filme para indignar Brasília.
O filme também será projetado em Brasília, em 25 de abril, durante o Acampamento Terra Livre, organizado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). O acampamento deve reunir ao menos 1500 indígenas de todo o Brasil, em uma luta conjunta e unificada contra as medidas anti-indígenas que tem sido conduzidas pelo governo de Michel Temer.
Entre elas, o desmonte da Funai, a paralisação das demarcações e uma série de ações classificadas pelos indígenas como “genocidas”. Segundo as palavras de Dinamam Tuxa, liderança da APIB: “uma conjuntura da política indigenista que se afunila para um extermínio total”.
Cedo esta coluna para uma belíssima entrevista enviada pela coordenadora do Grupo de Trabalho Camponeses e Indígenas na Comissão Nacional da Verdade, a psicanalista Maria Rita Kehl, com o documentarista e indigenista Vincent Carelli.
MRK: Quantas vezes você foi filmar os Guarani-Kayowá?
VC: Fui pela primeira vez em 1988, na época em que a Constituinte votava os direitos dos índios. Depois entre 1988 e 1999, quando filmei um capítulo para a série “Índios no Brasil”. Voltei entre 2012 e 2014. Na primeira fase de visitas às terras deles, não supus que o problema da disputa pelas terras ia tomar essa proporção. A resistência indígena ao invasor já era, como agora, um movimento liderado pelos rezadores.
Só na Constituição de 1988 os principais direitos dos índios viraram lei. Até ai, o Estado considerava os índios mais ou menos incapazes, e atribuía a si mesmo o papel de tutor/patrão/civilizado. O Brasil de 1988, que aspirava ingressar na modernidade depois de 21 anos de Ditadura Militar, reconheceu-se, finalmente, como um país pluri-étnico.
MRK: Qual é a resistência contra a diferença cultural que eles representam, então?
VC: Veja o cinismo do ministro Gilmar Mendes, do STF, ao comentar a pressão por se reconhecer os direitos dos índios à terra: “então teremos que devolver Copacabana aos índios?” Os índios que estariam em “Copacabanas” por aí nem existem mais. Foram extintos.
O problema é dos grupos indígenas que existem hoje, e reivindicam reparação pela perda de suas terras. Que entendimento tem um juiz do Supremo sobre a condição indígena? O modo de ver os índios foi herdado do processo colonial: seriam “selvagens”, atrasados, vistos com desprezo. A prática de atirar, à distância, contra os índios [uma cena chocante, atual, de Martírio], que são cidadãos brasileiros, como se caçassem bichos, vem dos Bandeirantes.
MRK: O [antropólogo] Eduardo Viveiros de Castro diz que “o Brasil quer transformar todos os índios em pobres”. Qual o ganho para o País, nessa operação?
VC: Aí está nossa ignorância etnocêntrica. Para muitos, a diversidade social ou cultural não tem interesse. A frase do deputado Luís Carlos Heinze (PP-RS) é emblemática. Ele diz, num trecho do filme, que a Casa Civil, do então ministro Gilberto Carvalho, abriga a “escória” do país: “Índios, quilombolas, negros, sem-terra, gays, lésbicas”. Ele repudia a diversidade. Por que um índio seria menos brasileiro do que um sujeito chamado Heinze (risos)?
Ele acusa a Noruega de financiar ONGs de defesa dos índios para depois tomar nossa riqueza. E quando essa turma toma o poder, o que faz? Vendem o pré-sal… para a Noruega! Eles nem precisam vir aqui tomar nada, os caras entregam! E o dinheiro fica com eles, não vai para o Estado.
Agora querem liberar a compra de terras na Amazônia – e os índios é que são os “estrangeiros” em seu território, acusados de querer tomar o que é nosso! Os índios são os grandes protetores de nossas riquezas naturais e nossas florestas.
MRK: Você vai fundo em questões históricas…
VC: Hoje, a ameaça mais grave contra os índios é o marco temporal”, interpretação falaciosa da Constituição de 1988 que diz que quem estava em suas terras em 1988 terá direito a elas, mas quem não as ocupava, perde o direito.
Isto equivale a zerar a história dos índios. Eles não estavam lá em 1988 porque já tinham sido expulsos – por ação do Estado! Então “quem já perdeu, azar?” Por isso digo, na narrativa, que “a história é o fiel das demandas dos índios”.
A identidade dos Guarani-Kayowá é muito centrada em bens espirituais. Eles têm uma relação espiritual com a morte. Não se desesperam. A sobrinha do Ramão, que foi assassinado no Apy Kahi, chora no túmulo dele. Mas diz: “nessa terra aonde você foi, um dia nos reencontraremos e seremos felizes”.
Todo rezador guarani sonha subir ao céu em vida, no transe da reza e da dança. Para eles não existe o inferno. Todos irão um dia para a morada do criador.
MRK: Depois de ter filmado lá em 1988 e 1999, o que te levou a voltar lá em 2012?
VC: Ali, hoje, se encontra o caso mais dramático da questão indígena. Não tem outro caso no Brasil de uma resistência cultural tão radical. Em quase 500 anos de contato, eles não perderam a língua, a religião, suas convicções profundas sobre seus direitos e sua missão de povo escolhido para cuidar da terra que não pode ser apropriada porque pertence a criador, Nhanderu (nosso pai).
Eles são os guardiões das terras. Por isso essa resistência quase fatalista. Confrontam o grande tabu capitalista da propriedade. Para eles, a propriedade de um bem sagrado é uma aberração. Por isso demoraram tanto a reagir! No começo, sua ideia era de compartilhar – depois perceberam a barbárie. Um deles diz ao (ministro) Aristides Junqueira: “os brancos não fizeram a terra! Aquele que nos ilumina é o dono, lá em cima!”
O Heinze diz que é ideológico. Pelo menos nisso ele está certo: é um confronto de civilizações. Eles contestam a essência do capitalismo: a propriedade privada. Aí os caras enlouquecem: “mata esses bárbaros”! É a cara do Brasil de hoje.
Em Brasília o filme pegou. Xingavam da plateia os ruralistas e a Kátia Abreu. No final do filme eu digo: é no trato com os índios que a sociedade brasileira se revela. Até quando essa história vai se repetir? Um dia o Estado Brasileiro vai assumir a responsabilidade por essa tragédia ou teremos que enfrentar tempos mais sombrios? Espero que não.
MRK: Você desconstrói o herói [Marechal] Rondon?
VC: Sim, a intervenção de Rondon é pacificadora mas o objetivo continua sendo apagar da memória cultural, as línguas próprias, os ritos, e assim trazer os índios como mão de obra barata para o mundo do trabalho, um verdadeiro etnocídio.
A Funai é herdeira dessa prática, ao apostar na dissolução da população indígena na brasileira. As reservas indígenas eram, para os fazendeiros, reservas de mercado de trabalho, e o Serviço de Proteção ao Índioo (SPI) o agenciador dos trabalhadores.
Os capitães indígenas, promovidos pelo SPI, eram pelegos do Estado. Extinto o SPI, viraram agenciadores de mão de obra. Mais tarde os usineiros de São Paulo vinham ao Mato Grosso do Sul buscar mão de obra indígena para o corte da cana. Gostavam dos índios porque eles não reclamavam: “índio trabalha calado”