Um governo progressista, num país saído das urnas rachado ideologicamente, está sendo levado a fazer concessões ao uso da força e vigilância armada nas escolas. A crise é tão grave quanto urgente, diante da atmosfera de pânico deflagrada por cruéis ameaças, com ou sem fundamento, que em poucos dias se espalharam por redes sociais e aplicativos de mensagens. No penúltimo dia de outubro passado, 13 estados deram maioria de votos a Luiz Inácio Lula da Silva, vitorioso no pleito, e 14 a Jair Bolsonaro, que tentava a reeleição. Na disputa mais acirrada desde a redemocratização, a diferença entre os candidatos não chegou a 2 pontos percentuais, escancarando um Brasil repartido em visões de mundo, crenças e métodos contrários.
No ambiente ainda politicamente polarizado de uma democracia que, não faz três meses, conteve uma tentativa de golpe de Estado, o Executivo federal foi instado a dar respostas rápidas à violência contra escolas. Num relatório robusto produzido por especialistas de alto nível, o problema foi apresentado como prioridade ao governo de transição. Tornou-se emergência após dois ataques que, no intervalo de uma semana, deixaram mortas em São Paulo (SP) uma professora, em Blumenau (SC) quatro criancinhas.
Um grupo interministerial formado às pressas, à frente Camilo Santana, ministro da Educação, foi incumbido pelo presidente da República de entregar aos brasileiros medidas para restaurar segurança e paz às instituições de ensino. Desde então, quem protagoniza as respostas é o titular da Justiça e Segurança Pública. Ex-governador e ex-juiz federal, Flávio Dino tem se equilibrado entre a racionalidade de um discurso pautado na inteligência policial e a aplicação açodada de iniciativas de dispositivos de segurança, patrulhamento ostensivo e até segurança armada nas escolas brasileiras.
Primeiro, o Ministério da Justiça liberou R$ 150 milhões para estados e municípios usarem em programas de ronda escolar; pesquisa, diagnóstico e capacitação em segurança; monitoramento de ameaças em ambientes cibernéticos; prevenção à violência. Na sequência, reservou mais R$ 100 milhões para guardas municipais. A dificuldade em sensibilizar redes sociais, em particular o Twitter, levou à publicação de uma portaria para responsabilizar as plataformas e conter veiculação de ameaças e incitação à violência em escolas.
O texto, sem prazo determinado, deu ao Executivo poder de requisitar relatórios de risco de acesso de crianças e adolescentes a conteúdo violento, determinar retirada de postagens e identificação de autores de ameaças, estabelecer moderação ativa e informar regras do algoritmo de recomendação. Dino deixou claro que o regramento só vale para situações envolvendo estudantes, crianças e adolescentes. O perigo é a excepcionalidade se tornar cotidiana, alertou em rede social a pesquisadora Nina Santos, pós-doutoranda no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital.
Governos estaduais do campo conservador e da extrema direita têm se apressado em anunciar aumento de efetivo policial e segurança armada, caso de Santa Catarina, Paraná e São Paulo. Em Goiás, Ronaldo Caiado causou espanto ao ordenar, num impulso, a prisão dos pais e busca e apreensão na residência de um adolescente que feriu três colegas nesta semana. As famílias, por atos ou omissões, não estão livres de responsabilidade, mas dentro do devido processo legal.
A experiência internacional, em particular nos Estados Unidos, tem demonstrado que política armamentista tende a elevar o número de vítimas e instalar um clima de desconfiança e medo no ambiente escolar. Na via policial, o caminho é inteligência e investigações articuladas. Em artigo para o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o coronel reformado da PM-SP Alan Fernandes analisou 17 casos de violência evitados. Em dez, a identificação do risco partiu de órgãos não policiais, como direção e segurança escolar, pais e alunos. Nas sete situações descobertas pela polícia, a maioria partiu de vigilância em redes sociais.
O ministro da Justiça ampliou de dez para 50 o total de policiais federais dedicados ao rastreamento digital. Em ofício aos 27 governadores, reforçou a necessidade de troca de informações com delegacias de crimes cibernéticos. Nesse ambiente estão extremistas de direita dispostos a atrair, incitar e, tragicamente, capacitar crianças, adolescentes e jovens inoculados por ódio, misoginia, racismo, sentimentos de exclusão e transtornos mentais que se habilitam à barbárie.
Sem deixar de reconhecer a necessidade de reforçar o policiamento ostensivo neste momento agudo, Flávio Dino recomendou a formação de comitês estaduais formados por secretarias de Educação e Segurança, representantes de escolas, professores, famílias, comunidade. A centralidade é das autoridades da Educação, com participação de MP, Conselhos Tutelares, Saúde. Como destacou o Instituto Sou da Paz em nota pública:
— Tornar as escolas parecidas com prisões não resolve. O principal investimento deve ser identificar conflitos e lidar com eles, fortalecendo a estrutura escolar e a capacidade de professores e equipe técnica, além de trazer apoio à saúde mental dos trabalhadores e estudantes.
Integrante do grupo que elaborou o relatório sobre violência extremista para a transição, Luka Franca, do Movimento Negro Unificado, recomenda parcerias de escolas com entidades que atuem na rede de proteção a crianças e adolescentes; conteúdo pedagógico e rodas de conversas sobre discursos de ódio, discriminação e intolerância, armamentismo, riscos das redes sociais; reforço das disciplinas de humanidades, caso de História, geografia, sociologia e filosofia, negligenciadas no Novo Ensino Médio, ora sob revisão. Para enfrentar o ambiente de violência, a cultura de paz.