É preciso evitar que barbárie de SP se espalhe

Autoridades de outros estados têm São Paulo como farol

Não só as estatísticas, mas a sucessão de casos isolados (no plural) escancara a política de segurança do governador bolsonarista de São Paulo. Faz oito meses que Tarcísio de Freitas declarou alto e bom som que não se importava com a denúncia ao Conselho de Direitos Humanos da ONU contra a escalada da violência policial em seu primeiro ano de mandato.

— Pode ir na ONU, na Liga da Justiça, no raio que o parta, que eu não tô nem aí — disparou o mandatário num misto de arrogância e deboche.

Sem moderação.

Desde o início de 2023, um mosaico de episódios emblemáticos de brutalidade sugere que as forças de segurança do estado estão autorizadas a barbarizar. Um relatório elaborado pela Ouvidoria de Polícia de São Paulo — em conjunto com organizações da sociedade civil e movimentos de defesa dos direitos humanos — mostrou que, de julho de 2023 a abril deste ano, as operações Escudo e Verão deixaram 84 mortos. Foram as ações mais letais do estado desde o massacre de 111 presos do Carandiru, há 32 anos.

A chegada de Tarcísio ao poder, que fez de Guilherme Derrite, deputado federal (PL-SP) e capitão reformado da PM-SP, secretário de Segurança Pública, marcou a guinada na área. Quando o governador assumiu, a Bahia era o estado campeão em letalidade policial, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Publica, enquanto São Paulo diminuía seus números. Em 2022, a polícia baiana matou 1.467 pessoas; a paulista, 421. No ano passado, as mortes por intervenção de agentes do estado aumentaram nas duas unidades da Federação. Foram 1.699 na Bahia (+15,8%) e 504 em São Paulo (+19,7%).

Levantamento da Rede de Observatórios de Segurança, divulgado em novembro, apurou salto de 21,7% nas mortes por agentes da segurança paulista. Em meio às centenas de vítimas, casos estarrecedores se destacam. Um mês atrás, o menino Ryan da Silva Andrade, de 4 aninhos, foi morto durante um confronto no Morro São Bento, em Santos. Ele já havia perdido o pai, também baleado por PMs, em fevereiro deste ano, na Operação Verão. Durante o velório do menino, a presença de viaturas foi entendida como intimidação à família.

Policiais também estiveram na cerimônia fúnebre de Guilherme Alves Marques de Oliveira, de 18 anos, morto em decorrência de operação no Jardim Vitória, em outubro. Abordaram o irmão da vítima, que estava com a mãe, ao lado do caixão. À queima-roupa, policiais de São Paulo mataram o estudante de medicina Marco Aurélio Cardenas Acosta, de 22 anos, desarmado e sem camisa, num hotel na Vila Mariana, Zona Sul da capital paulista. Domingo passado, um vídeo flagrou o momento em que um soldado arremessou um motoentregador do alto de uma ponte na Vila Clara, também na Zona Sul. O jovem sobreviveu.

As autoridades tentam justificar o injustificável tratando a violência extrema como fatos isolados, erro emocional. O comandante-geral da PM-SP, coronel Cássio Araújo de Freitas, chegou a chamar de “infantil” a ação do militar. Como se crianças estivessem por aí a abordar e lançar pessoas do alto de viadutos. A declaração explicita, mais que a tolerância, o mandato para a polícia de São Paulo cometer abusos.

A violência desenfreada de policiais sob Tarcísio e Derrite lembra muito o Rio de Janeiro de Wilson Witzel e Cláudio Castro, quatro anos atrás. Foi depois do assassinato arbitrário — até hoje impune — do menino João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos, durante operação policial no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo (RJ), que o PSB e organizações da sociedade civil apelaram ao Supremo Tribunal Federal contra a letalidade de agentes da lei em favelas. Por violação de preceito fundamental da Constituição, o STF determinou a suspensão de operações injustificadas durante a pandemia e a elaboração, pelo governo fluminense, de um plano de redução de homicídios pelas forças de segurança.

Em 2019, primeiro ano do então bolsonarista Wilson Witzel como governador do Rio, a polícia matou 1.824 pessoas, recorde histórico. Depois da decisão do STF na ADPF das Favelas, as mortes decorrentes de intervenção policial caíram para 1.245 em 2020. Em 2023, foram 871, segundo documento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública feito para o julgamento final da ação, em andamento no Supremo.

Entre as recomendações para reduzir a letalidade policial está a instalação de microcâmeras em fardas, bem com o cumprimento, pelo Ministério Público, da atribuição de acompanhamento externo da atividade policial. São Paulo foi pioneiro na adoção das câmeras corporais, com redução inequívoca nas mortes praticadas por agentes da lei. Nos primeiros batalhões a incorporar a tecnologia, a letalidade diminuiu em dois terços. Essa também é ação em retrocesso no estado.

A brutalidade da política de segurança de Tarcísio e Derrite afeta os paulistas, mas também brasileiros de outras unidades da Federação, cujas autoridades têm São Paulo como farol. A barbárie precisa de freio lá para que outras regiões não sucumbam em sangue, luto e abuso.

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