Que as escolas de samba nos presenteiam todo ano com o maior show da terra – como Didi e Mestrinho eternizaram no samba-enredo da União da Ilha do Governador em 1982 – já sabemos. Também sabemos que as agremiações são espaços de resistência e reinvenção, como bem sintetizaram Evandro Salles, Nei Lopes, Clarissa Diniz e Marcelo Campos. Sabemos, ainda, que o samba é um bonito modo de viver, como diz o poeta Nelson Sargento.
Mas será que sabemos que as escolas de samba também são potentes espaços educativos, onde se desenvolvem práticas e aprendizagens (matemáticas)? Imagine se, para além do que já é [ou deveria ser] sabido por todos, soubéssemos que uma escola de samba não se chama “escola” à toa? Que lá se aprende música, costura, economia, matemática, solidariedade… Lá se aprende a aprender e a ensinar! Imagine se soubéssemos que o desfile se constrói com gente muito comprometida, que tem amor pelo pavilhão e que nas suas tarefas de construção do espetáculo desenvolve e compartilha artes e técnicas próprias para lidar com suas demandas de trabalho?
Em uma pesquisa* desenvolvida na Universidade Federal de Santa Catarina e nos barracões de duas escolas de samba da cidade de Florianópolis – a Protegidos da Princesa e a Embaixada Copa Lord – aprendemos tudo isso com as trabalhadoras e com os trabalhadores do mundo do samba. A pesquisa, inserida no campo de estudos da etnomatemática, se propõe a contar uma parte da história que a história não conta, mostrando que escola de samba é lugar de alegria, luta, educação, matemática. Lugar de produção de conhecimento.
No Brasil, as escolas de samba surgiram no Rio de Janeiro como uma forma de institucionalizar a festa que sofria com constantes perseguições e repressões, usando a denominação “escola” também como forma de legitimar as atividades realizadas pelas agremiações e os conhecimentos ali produzidos. Tentaram acabar com os festejos da população negra que ocupava a região central da cidade, mas o Carnaval resistiu e reinventou o desfile das escolas de samba, ou, nas palavras do jornalista Hugo Suckman, “a linguagem que o Rio de Janeiro inventou para contar história”.
A essência educativa das agremiações vem desde sua origem, em que os sambistas que apresentavam à comunidade a nova forma de brincar o Carnaval eram chamados de “mestres” ou “professores”. Ainda hoje, esse caráter pedagógico pode ser observado nos barracões das escolas de samba, como conta Mestre Louro, serralheiro parintinense responsável pela construção dos carros alegóricos da Protegidos da Princesa:
“Eles costumam me chamar de Mestre Louro, porque eu pego as pessoas assim oh e costumo ensinar assim. Aí a gente não tem essa arrogância de ficar com o que a gente aprende pra si mesmo, sabe? É uma coisa que a gente tem que passar pras pessoas.”
Dessa forma, serralheiras/os, artistas, costureiras/os e outras/os tantas/os profissionais produzem e compartilham conhecimentos em um processo educativo que se dá por amor ao Carnaval, permitindo que as gerações mais jovens não deixem o samba morrer. Nesses processos, conhecimentos matemáticos diversos são operados, como os que a costureira Sandra usa para aproveitar ao máximo os tecidos disponíveis para confecção das fantasias da Embaixada Copa Lord – recursos bastante limitados devido ao baixo investimento público em manifestações culturais de matrizes africanas e afro-brasileiras:
“[A tarefa é demorada] por causa dos cálculos. Tem que calcular quantas peças vai dar, qual a melhor forma de aproveitamento do pano, se o pano que a gente tem é suficiente. […] Então eu tenho que pensar o que é mais conveniente pra escola.”
A pedagoga Dana, que no período pré-Carnaval praticamente se muda para o barracão do qual é diretora, conta da importância das ferramentas matemáticas no dia a dia de preparação para o desfile:
“Tem que tá pensando ‘será que a quantidade que tem vai dar?’, tem que tá medindo, somando, multiplicando a quantidade que vem de paetê no rolo pra quantidade de fantasia que tem pra ser decorada. Então a matemática, ela é usada o tempo todo, ela é fundamental. A gente não se dá conta diariamente, mas eu acho que é um dos caminhos que a gente mais usa pra que a coisa toda dê certo, pra que o carnaval aconteça dentro da escola de samba.”
Assim, as/os trabalhadoras/es dos barracões das duas agremiações nos ensinam a conhecer e a reconhecer como o conhecimento matemático é produzido e compartilhado durante a confecção dos artefatos para o desfile, através de práticas, métodos, teorias e invenções construídas para solucionar suas demandas específicas. A partir das suas narrativas, podemos pensar para além de uma educação matemática que restringe a matemática a um fim em si mesma, isenta de influenciar e ser influenciada pelo contexto social, histórico e político. Com a perspectiva da etnomatemática, olhamos para artes e técnicas de explicar e conhecer em contextos culturais que historicamente sofrem tentativas de subalternização e invisibilização, entendendo a matemática como uma construção social, que traz consigo implicações políticas e pedagógicas.
No mundo do samba, aprendemos que as/os artistas desenvolvem técnicas e materiais para resolver as demandas específicas das produções dos carros alegóricos e fantasias: adaptam medidas, modificam materiais e alteram estruturas para ajustar os processos aos recursos disponíveis. Nos resta, enfim, concordar com Nelson Sargento (e quem ousaria discordar?), e afirmar que o samba é um bonito modo de viver, que, para além de ensinar estratégias de re-existência, ensina a conhecer e respeitar as diferentes formas de viver, saber e fazer matemática.
*Jéssica Lins de Souza Fernandes
Mangueirense e membra do grupo de pesquisa Alteritas: Diferença, Arte e Educação. Licenciada em Matemática, Mestra e Doutoranda em Educação pela UFSC, sob orientação das professoras Joana Célia dos Passos e Rita de Cássia Pacheco Gonçalves.
*A pesquisa deu origem à dissertação de mestrado “A voz do morro: narrativas etnomatemáticas produzidas no Carnaval de escolas de samba de Florianópolis” e segue em nível de doutorado.
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