O legado político do Manifesto do Coletivo Combahee River

Recentemente foi publicada a tradução em português do Manifesto do Coletivo Combahee River. A tradução em português chega ao Brasil após 42 anos de sua publicação em língua inglesa. A tradução para o português do Manifesto do Coletivo Combahee River  é oportuna e importante, pois estamos buscando coletivamente novos modelos de transformação social que levem a sério a maneira como as mulheres negras interagem e trabalham para transformar múltiplas opressões.

Em How We Get Free: Black Feminism and the Combahee River Collective, a intelectual-ativista e feminista negra Keeanga-Yahmatta Taylor escreve que: “falar do Coletivo Combahee River não é nostalgia, longe disso, falamos sobre o Coletivo porque as mulheres negras ainda não são livres”. Talvez isso seja uma das lições mais importantes que estamos testemunhando nesses tempos da pandemia de coronavírus. As mulheres negras ainda não são livres e, por extensão, as pessoas negras ainda não são livres. Vemos mulheres negras que trabalham no serviço doméstico e outras prestadoras de serviços que foram algumas das primeiras a perder o emprego sem remuneração ou foram forçadas a continuar trabalhando em condições inseguras que as expuseram ao vírus mortal. Eles tiveram que lidar com o vírus que devastou suas famílias e comunidades, fome generalizada, despejos de moradias e distúrbios de saúde mental, além do terror cotidiano de invasões e assassinatos policiais. Forças policiais fascistas, condições de trabalho da neo-escravidão, infraestrutura urbana e moradia precárias e um sistema de saúde pública inadequado revelam ainda como todas essas forças socioeconômicas se interconectam para desumanizar e destruir vidas negras. O genocídio de homens, mulheres e crianças negras continua ocorrendo.

Enquanto a população negra nas Américas morre a uma taxa desproporcional por coronavírus e também violência policial, precisamos reconhecer que o projeto anti-genocídio é diaspórico. Quem nas comunidades do Rio de Janeiro, Kingston na Jamaica e Minneapolis nos Estados Unidos, pode fazer quarentena com segurança sem o risco de ser assassinado pelo Estado? Os policiais que assassinaram Breonna Taylor de 26 anos, uma trabalhadora essencial na área médica, em março, enquanto ela dormia na sua casa em Louisville, Kentucky, continuam trabalhando sem qualquer punição. Quem pode esquecer os gritos de agonia quando as mães de João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos, assassinado em sua sala de estar, e de Miguel Otávio Santana, que morreu quando sua mãe trabalhava durante a pandemia? Como Christen A. Smith argumenta em seu ensaio, “Trauma persistente no Brasil: violência policial contra mulheres negras” (2018), é hora de complexificar e expandir a forma como entendemos a violência estatal para incluir as várias maneiras pelas quais os negros experimentam a morte nas Américas. A difusão da morte hoje é uma extensão da longa história de negligência social, violência e extermínio racial.

Lembro-me que nos dias seguinte ao assassinato da vereadora do Rio de Janeiro, Marielle Franco, em março de 2018, um grupo de acadêmicas estadunidenses publicou o manifesto “Sobre o imperativo da solidariedade transnacional: uma declaração feminista negra sobre o assassinato de Marielle Franco”, inspiradas pelo Manifesto do Coletivo Combahee River. As autoras escreveram, “Como povo negro nas Américas, devemos nos comprometer a continuar o trabalho pelo qual Marielle morreu. Devemos afirmar a necessidade de centrar nossas lutas pela libertação na vida e a na experiência das mulheres negras, não às custas da diversidade de gênero de nossas comunidades, mais amplas, mas precisamente porque “Se as mulheres negras fossem livres, isso significaria que todo mundo teria que ser livre, já que nossa liberdade exigiria a destruição de todos os sistemas de opressão” (Manifesto do Coletivo Combahee River).

No momento em que novas gerações de acadêmicos e ativistas abraçam o pensamento feminista negro como ferramenta analítica para entender e lutar contra o patriarcado, racismo e opressão de classe, a vida e a morte de Marielle Franco são um lembrete crucial de que a leitura do manifesto do Coletivo Combahee River é importante ainda hoje. Esta tradução para o português também se dá no contexto da eleição de líderes de extrema direita nos Estados Unidos e no Brasil que encorajaram o ódio racial, patriarcal e homofóbico, e que impulsionaram o apoio a militarização da polícia, além de não coordenar um esforço nacional no combate à atual crise de saúde pública, com efeitos devastadores para as comunidades negras. Marielle foi assassinada precisamente por causa de suas crenças e atuação feminista radical, como uma ativista negra, lésbica e de esquerda, de um dos bairros mais pobres e altamente policiados do Rio de Janeiro. Em sua luta, Marielle incorporou uma política socialista, que era, ao mesmo tempo, antirracista, antissexista, anticapitalista e anti-imperialista, emergindo das margens, assim como o Coletivo Combahee River articulou a visão da organização feminista negra nas décadas que se seguiram.

O Manifesto do Coletivo Combahee River foi publicado originalmente no Capitalist Patriarchy and the Case for Socialist Feminism, pela Monthly Review Press. O Coletivo foi nomeado em homenagem à ação de guerrilha, liderada pela abolicionista Harriet Tubman, em 2 de junho de 1863, que levou à libertação de mais de 750 homens e mulheres escravizados. O Coletivo começou como um grupo de feministas negras que incluía mulheres-chave como Barbara Smith, Beverly Smith e Demita Frazier, comprometidas com a construção de uma alternativa radical às organizações de feministas brancas, como também ao movimento Black Power e a organizações por direitos civis, lideradas por homens negros.

Primeiro retiro feminista negro do Combahee River Collective, em julho de 1977, em South Hadley, Massachusetts. (Foto: Cortesia de Margo Okazawa-Rey)

O Manifesto de início à formação contemporânea do movimento feminista negro, nascido na década de 1970, e suas convicções básicas, bem como os desafios de uma organização autônoma de feministas negras. Até hoje, uma das principais contribuições do texto é a abordagem integrada para compreender as experiências das mulheres negras. Uma frase, logo no primeiro parágrafo, resume claramente este ponto: “estamos ativamente comprometidas com a luta contra a opressão racial, sexual, heterossexual e de classe; encaramos como nossa tarefa particular o desenvolvimento de análise e práticas integradas baseadas no fato de que os principais sistemas de opressão estão interligados” (p. 1). Enquanto a política antirracista e antissexista permitiu reunir inicialmente mulheres, as ideias e práticas feministas do Coletivo se expandiram para incluir a luta contra o heterossexismo e a opressão econômica. Afirmando que queriam ser reconhecidas como “humanas” iguais aos homens, as autoras rejeitaram qualquer tipo de determinismo biológico ou separatismo, os compreendendo como uma “base particularmente perigosa e reacionária sobre a qual construir uma política” (p. 6). Dessa forma, entendem que o sexo não deveria ser um determinante de relações de poder, incluindo aí a política negra.

A forte posição socialista do Manifesto Coletiva do Rio Combahee reconhece uma tradição de ativistas feministas negras de esquerda que produziram idéias antes de sua época, como Claudia Jones, que argumentou da mesma forma que era importante olhar para o posicionamento social exclusivo das mulheres negras nas margens e no tipo de militância que emerge. Eles trataram questões materiais concretas de relevância para as mulheres negras, como trabalho em fábricas, acesso à saúde, direitos sociais e abuso de esterilização como questões feministas negras. A declaração nos fornece o idioma para interpretar as atuais condições sociais e políticas no Brasil; por exemplo, o que mais impressionou Marielle Franco foi o seu compromisso em prestar atenção política a um compromisso consistente com a realidade cotidiana das comunidades negras e usou sua posição política para pagar por melhores transportes públicos, creches e direitos humanos que revolucionariam sua vida. vidas sociais. À medida que o pensamento feminista negro se torna cada vez mais arraigado no pensamento científico humanístico e social, a leitura do Coletivo Combahee River hoje e em português nos lembra os aspectos essenciais da prática feminista negra.

Integrantes do Combahee River Collective em uma marcha em Boston, 1979. Segurando a faixa, da esquerda para a direita: Maria Elena Gonzales, Margo Okasawa-Rey, Barbara Smith. (Foto: Tia Cross)

No Manifesto, o Coletivo Combahee River também afirmou firmemente que o princípio feminista precisava incluir uma compreensão do pessoal como político. A “textura multifacetada da vida das mulheres negras” (p. 6), moldada por suas experiências cotidianas com a opressão, revela a complexidade de como racismo, capitalismo e patriarcado operam. A contundente posição socialista das autoras do Manifesto reconhece a tradição de intelectuais-ativistas negras feministas e de esquerda, que produziram ideias antes de seu tempo. Um dos exemplos é Claudia Jones, que já nos anos 1940, argumentava sobre a importância de olhar para a posição social única das mulheres negras marginalizadas e o tipo de militância que elas desenvolvem, tratando de questões materiais relevantes para as mulheres negras – a exemplo do trabalho nas fábricas, acesso a cuidados de saúde, direitos sociais e abusos da esterilização feminina – como questões feministas negras.

O Manifesto oferece uma linguagem para interpretar as condições sociais e políticas atuais no Brasil; por exemplo, o mais impressionante sobre Marielle Franco era o seu compromisso em dar atenção política às realidades cotidianas de comunidades negras, usando sua posição política para demandar melhorias no transporte público, creches, direitos humanos que poderiam revolucionar vidas. À medida que o pensamento feminista negro se torna cada vez mais entranhado no pensamento científico humanista e social, a leitura do Coletivo Combahee River realizada hoje e em português permite lembrar quais os aspectos essenciais da prática feminista negra. Ao contemplarmos nossa sobrevivência coletiva no Brasil e nos Estados Unidos no momento atual, precisamos entender que o futuro democrático deve envolver a libertação da população negra e, como escreve a feminista de esquerda negra Claudia Jones (1949), a libertação dos negros deve incluir “o fim da negligência com os problemas ” da mulher negra.

Tradução: Edilza Sotero


¹ Keisha-Khan Y. Perry é professora do Departamento de Africana Studies da Brown University.
Autora do livro “Black Women Against the Land Grab: The Fight for Racial Justice in Brazil
[Daqui eu não saio, daqui ninguém me tira: A luta de mulheres negras pelo direito à terra no
Brasil]” (título em português, com previsão para publicação no Brasil em agosto de 2020).


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