“Eles primeiro tiraram o direito de ir e vir e agora a vida do meu filho”

Elzanira de Paula cobria as feridas nas pernas e nas nádegas do filho Robson Donato de Paula, 16, cadeirante desde que foi alvejado na coluna cervical em uma perseguição da PM, em 2014, quando o garoto perguntou se, naquela noite, ela dormiria ali. Era sexta-feira, 21 de outubro.

Por Marcos Sergio Silva, do UOL

Os dois estavam na casa da mãe de Elzanira, no Jardim Rodolfo Pirani (zona leste de São Paulo), um hábito que se tornou frequente desde que Robson perdeu os movimentos da cintura para baixo. Deprimido, ele pedia contato com os amigos de bairro –Elza já não morava mais no local, mas em uma região próxima. Foi o último encontro de mãe e filho.

No domingo (6), os corpos de Robson e de Jones Ferreira Araújo, 30, César Augusto Gomes, 19, Jonathan Moreira, 18, e Caique Henrique Machado, 18, foram encontrados em uma área rural de Mogi das Cruzes, em estado avançando de decomposição, enterrados em covas rasas e cobertos com cal. Robson, que tinha uma prótese na coluna, foi o primeiro a ser identificado. Até a noite desta quinta-feira (10), restava o reconhecimento de uma das vítimas.

“Eu fiquei sem entender [a morte de Robson], porque meu filho não tinha condições de fazer nada com ninguém. Eu me pergunto por que fizeram isso com ele. Falaram que o meu filho estava sem a cabeça, mas lá, no IML, nunca disseram nada, nem pudemos ver. Quem passa as informações é a imprensa, a gente não pode nem mesmo reconhecer os corpos”, diz Elza.

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A polícia encontrou os corpos no domingo (6) em Mogi das Cruzes

Robson, afirma a mãe, perdeu os movimentos de parte do corpo depois de uma perseguição policial. Ele, com mais três amigos, estava em um carro roubado em 2014 quando virou alvo da PM. “Eles não tinham roubado”, diz Elza. “Aqui no bairro, a molecada apronta, rouba esses carros e larga pela rua. E os meninos pegaram um para passear. Ele estava na casa da minha mãe e foi junto dos meninos [que já estavam no carro].”

Quando chegou perto da casa da avó, no Jardim Rodolfo Pirani, Robson e o garoto que dirigia abriram as portas do veículo e começaram a correr do cerco policial. “Eles sabiam como a polícia é”, diz Elza. Dois ficaram no carro, foram apreendidos e depois liberados pela polícia. O que estava dirigindo correu e foi morto. “Meu filho correu para o outro lado, e um tiro disparado pela PM atingiu a coluna e ele caiu imediatamente. Eles alegaram que fizeram isso porque os meninos estavam armados. Mas não tinha arma nenhuma, nada. Nunca isso foi provado.”

Nenhum policial foi responsabilizado pela morte do garoto e pelo tiro que tirou parte dos movimentos de Robson. “Eu fui até o DHPP [Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa], mas o meu filho não quis seguir adiante. Aqui, onde a gente mora, tem os amigos dele. ‘Deixa pra lá’, ele dizia. Ele sabia que, se seguissem [com o processo], ele não teria como se defender [de um ataque]. Ele não tinha como correr. Se outros policiais pegassem ele, acabariam matando.”

“No começo, ele ficou deprimido”, diz Elza. “Não moro no bairro onde minha mãe mora, moro em um bairro próximo. Comecei a levá-lo para lá [no Jardim Rodolfo Pirani] toda sexta para ficar com os amigos de infância conversando. Depois de muito tempo, ele começou a aceitar [a limitação] e a sair, porque ele tinha vergonha [da deficiência]. Não tinha condição nenhuma de estar envolvido em nada. Ele dizia que sabia das limitações dele.”

Além do envolvimento com o carro roubado, Robson já tinha passagem de quase um mês pela Fundação Casa também por furto de veículo. “Não estou falando que o meu filho seja um santo”, diz a mãe. “Mas ele pagou muito caro pelo erro dele, pois ficou cadeirante. Depois, não tinha mais como ele fazer nada.”

No dia do desaparecimento, além das escaras (feridas formadas quando a circulação é interrompida devido à pressão de superfícies duras como colchões ou a própria cadeira de rodas contra o corpo), Robson estava com infecção urinária, que ameaçava interromper o funcionamento dos rins. “Ele passou o dia com os amigos. Cortou o cabelo, porque na sexta tem o baile aqui perto de casa que ele costumava ir. ‘Não vou fazer nada demais, só tenho que sair.’ Eu fiz um jantar na casa da minha mãe. Jantaram ele e o Cesar. O Caíque estava, mas não quis comer. E eles saíram, às 23h15. Depois disso nunca mais vi meu filho.”

Robson, assim como Cesar, Jonathan e Caíque, iriam para um sítio em Ribeirão Pires encontrar uma garota que havia adicionado um deles no Facebook. Jones, a outra vítima, apenas dirigia o carro. Segundo Elzanira, iriam mais dois grupos de garotos para o local, mas um foi impedido pela mãe de pilotar o carro e o outro disse que o veículo que iria estava quebrado. “Queriam mais pessoas nesse encontro, inclusive um que eles [os executores] estavam de olho”, diz.

Para ela, não há outra explicação senão a participação de PMs. No dia do desaparecimento, a ficha de dois garotos foi puxada por policiais – um deles era Robson. Elzanira, no entanto, não crê que o filho tenha sido alvo dos executores, nem liga o fato ao tiro que o garoto recebeu em 2014.

Na noite desta quinta-feira (10),  a polícia prendeu um guarda municipal de Santo André, na Grande São Paulo, sob suspeita de envolvimento na chacina de cinco jovens. O agente teve decretada sua prisão temporária por 30 dias. O guarda preso, segundo policiais, confessou envolvimento na elaboração dos perfis falsos das garotas em rede social, mas não no assassinato dos jovens.

A Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo afirma que ainda não há policiais investigados. “Não tem outra explicação” diz Elza. “Eles querem passar a versão de que seria a facção [o PCC] que teria encomendado a execução porque pegaram o carro de alguém, mas ninguém pegou carro nenhum. Se fosse da facção, não iriam fazer isso, porque não agem desse jeito.”

Mesmo com o corpo de Robson liberado desde segunda-feira (7), Elzanira aguarda a autorização de uma perícia independente para que o filho finalmente seja sepultado no Cemitério de Vila Alpina, na zona leste. O Estado pressiona pelo enterro, e diz que pode sepultá-los como indigentes por uma questão sanitária – os corpos estavam em avançado estado de decomposição. “O governo não quer aceitar a perícia independente e a gente tomou a decisão de não tirar os corpos do IML [Instituto Médico Legal] enquanto isso não acontecer. Eles querem tirar o foco, dizem que a gente tem preconceito com a polícia. Que eles venham ver o que a polícia faz na periferia então.”

A família de Robson também decidiu esperar o reconhecimento da última vítima, Jonathan. “Eu pensei nela, na mãe do Jonathan, e como seria se fosse meu filho. Iria ficar só o dela, e a gente esperando tanto tempo para achar [os corpos]… Não vamos recuar. Eles vão ter que pagar o que fizeram para os nossos filhos. Eles já tinham tirado o direito de ir e vir do meu filho, e agora a forma como eles tiraram a vida dele. Eles não tinham esse direito.”

 

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