Eliane Marques: A delicadeza da poesia que se transforma em revolução

Ela escreve, faz poesia, e estudou muito para chegar onde está, motivada por conquistar algo que era seu por direito: “Se, para os outros, estudar é sacrifício, para mim, é um prazer”

Por Isabel Marchezan Do Huffpost Brasil

CAROLINE BICOCCHI/ESPECIAL PARA O HUFFPOST BRASIL

Eliane Marques é a 117ª entrevistada do projeto “Todo Dia Delas”, que celebra 365 Mulheres no HuffPost Brasil.


Ela mede as palavras – ao falar e ao escrever. Para, pensa, escolhe bem. Mas se, ao narrar a própria vida em entrevista ao HuffPost Brasil, a poeta gaúcha Eliane Marques faz um esforço de encadeamento das frases, para que o raciocínio fique bem claro, quando senta para dedilhar seus versos no computador a intenção é inversa: embaralhar, confundir, provocar. “Eu trabalho desconectando as palavras do discurso ordinário, para que elas signifiquem outra coisa, que não é a do dicionário, do nosso dia a dia”, explica.

Eliane, de 47 anos, tem dois livros publicados: Relicário e E se Alguém o Pano. Auditora do Tribunal de Contas do Estado, ela só começou a escrever aos 33. Então, já havia cursado duas faculdades (Pedagogia e Direito). Em paralelo à literatura, envolveu-se com o estudo da psicanálise. E, em meio a tudo isso, concluiu o mestrado em Direito.

Gosto das poesias que dizem menos, que são menos comunicação, menos agarradas à realidade.

AROLINE BICOCCHI/ESPECIAL PARA O HUFFPOST BRASIL

Eliane, de 47 anos, tem dois livros publicados: Relicário e E se Alguém o Pano


Estudar sempre foi uma compulsão para Eliane. Natural de Santana do Livramento, na fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai, ela cursou pedagogia em sua terra natal. Escolheu o curso por uma razão prática: “eu queria uma faculdade que me desse retorno financeiro, me possibilitasse ter um tipo de trabalho diferente daquele da minha mãe, da minha avó, das minhas tias, da minha bisavó. Elas foram empregadas domésticas. Eu queria quebrar esse ciclo”.

Eu queria uma faculdade que me possibilitasse ter um trabalho diferente daquele da minha mãe, da minha avó, das minhas tias, da minha bisavó.

CAROLINE BICOCCHI/ESPECIAL PARA O HUFFPOST BRASIL

Estudar sempre foi uma compulsão para Eliane.


Formada com apenas 20 anos, deixou a fronteira para estudar Comunicação na cidade de Santa Maria. Passou no concurso público para técnica do Tesouro Estadual, largou a segunda faculdade, mudou-se novamente de cidade e resolveu cursar Direito. Prestou novo concurso, desta vez para ingressar no Tribunal de Contas.

Nos livros, ela sempre encontrou prazer, mas o hábito de estudar também refletia “uma grande angústia”. “Eu me sentia tão pressionada a trabalhar, estudar, ter um rendimento, que não sei se era uma necessidade ou o efeito do medo de ocupar um lugar que eu não queria. Era uma neurose minha”. Anos mais tarde, já em Porto Alegre e seguindo uma nova carreira no serviço público, essa “neurose” seria avaliada em sessões de psicanálise. “Em determinado momento, achei que não tinha valido a pena me dedicar tanto aos estudos. Mas [com a análise] passei a me pautar pelas minhas próprias réguas. Se, para os outros, estudar é sacrifício, para mim, é um prazer”.

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e se ainda aos piores mortos

o amém das moças

Já faz 15 anos que Eliane frequenta o Aprés Coup Sociedade Psicanalítica, onde além de paciente, tornou-se uma estudiosa e professora. “O instrumental da psicanálise me ajuda a entender as coisas do meu entorno, analisar a posição da mulher, da mulher negra”. Foi lá também que Eliane abraçou a poesia, um hábito antigo mas até então errático. “Eu me arriscava a escrever, mas não era sistemático, era quase um desespero”. Hoje, ela coordena a Escola de Poesia do Aprés Coup, e também edita a revista Ovo da Ema.

Para construir seus textos, Eliane procura palavras pouco comuns. Lança mão também de elementos do espanhol, idioma que permeou sua criação na fronteira, e do igbo, falado pela etnia nigeriana de mesmo nome. “Não uso palavras difíceis por usar, e sim porque a poesia exige. Sei que a minha não é uma poesia que chega às pessoas com facilidade. Tenho consciência de que elas até rechaçam meu texto, mas não me importo”.

Eu sempre fui interessada em estudar, em usar as teorias para me aproximar do mundo com outro instrumental, e vi que a psicanálise me daria esse instrumental.

CAROLINE BICOCCHI/ESPECIAL PARA O HUFFPOST BRASIL

“Eu me sentia tão pressionada a trabalhar, estudar, ter um rendimento, que não sei se era uma necessidade ou o efeito do medo de ocupar um lugar que eu não queria”


Entre os autores que recheiam as prateleiras de Eliane Marques, os africanos são muito importantes. Ela cita o camaronês Achille Mbembe, autor de Crítica da Razão Negra, que transformou sua vida; a nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, autora de Americanah e a poeta moçambicana Noémia de Souza. No ano passado, Eliane produziu e dirigiu um documentário sobre a vida e a obra de Wole Soyinka, um poeta, dramaturgo, ensaísta, professor e ativista dos direitos humanos que foi o primeiro africano negro a receber o prêmio Nobel de Literatura, em 1986. Hoje cultiva um plano de filmar O mundo se despedaça, obra do nigeriano Chinua Achebe, considerado o fundador da literatura africana moderna.

tal seu ofício

ofício negro

hera em cada mano

nelúmbio e sonho

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o mais americano

desses que se acossam nas vértebras

à esquerda de um canto

“Representatividade e visibilidade não têm valor por si. São importantes, mas não é isso que vai transformar o papel de subalternidade na sociedade brasileira. As mulheres negras têm de ocupar cargos no executivo, no legislativo e no judiciário. E não apenas ocupar as posições, mas estarem comprometidas com as causas.”

Autoras negras também são importantes nessa biblioteca. Ela elenca as brasileiras Djamila Ribeiro e Lélia Gonzalez e as norte-americanas Patricia Hill Collins e Angela Davis no “arcabouço teórico” que lhe serve para reinterpretar situações de opressão. “Construímos um saber importante para transformar a sociedade. Mas nosso discurso não vale só para dentro, não falamos só para outras mulheres negras. Nosso discurso vale para brancos, negros, indígenas, mulheres, homens”.

A poesia é sempre uma incerteza, é correr mais risco de fracassar do que de acertar.

CAROLINE BICOCCHI/ESPECIAL PARA O HUFFPOST BRASIL

Hoje cultiva um plano de filmar O mundo se despedaça, obra do nigeriano Chinua Achebe, considerado o fundador da literatura africana moderna

Mas não é na poesia de Eliane o lugar desse discurso. Ela rechaça a “instrumentalização” da poesia para qualquer objetivo. “Não tento transmitir nenhuma mensagem, dar nenhum recado nem ordenar ninguém a nada. Detesto isso. Não quero palavras de ordem na minha poesia.”

negrisísifo se for o quase

junto à gordura dos soldos

a marcha (a medula) – os sovacos

entre ônibus e obituários

a propriedade

(e por que não)

de qualquer hotentote

a salvo apenas os ombros

ouve: aqui uma vez bandos

O próximo livro está em andamento. Ainda não tem data de lançamento, mas já tem nome: O Poço das Marianas. Antes, entretanto, Eliane está comprometida com a prosa, na apresentação de uma nova edição de Úrsula, romance da maranhense Maria Firmina dos Reis publicado no século XIX. Além de negra e mulher, Maria Firmina também foi pioneira em abordar a escravidão do ponto de vista dos negros, em uma narrativa com protagonistas escravos.

Mas ainda é uma autora pouco estudada nos bancos escolares brasileiros.

 

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