Em 2020, o negro ainda é útil ao colonizador

FONTEPor Ndeye Fatou Ndiaye no Quadro Negro
Imagem: Quadro Negro

É característica dos movimentos políticos-sociais, como o movimento negro, a participação e escuta apenas de pessoas “adultas”, seja lá o que isso de fato queira dizer. Em 2019, a ativista estadunidense Angela Davis veio ao Brasil para palestras concorridas. Foi ouvida por milhares. E encantou-se por, na platéia, haver uma quantidade de mulheres negras muitos jovens, algumas menores de idade, todas politizadas e com uma vivência fundamental que, segundo Angela, enriquece o debate. Malcom X só discursava para homens adultos. Ndeye Fatou Ndiaye, brasileira de 15 anos de idade, já é uma destas intelectuais que nos encantam com sua lucidez. Pronta para inclusive, como neste texto escrito para o Quadro-negro, ter algo a dizer para os seus. “Utilizar o negro para produzir resultados é marca registrada do colonizador: desde a chamada escravização, passando pela colonização, neocolonialismo, a seleção francesa de futebol e até chegar no comitê do Carrefour criado no mês passado.” – escreve ela, adiantando o tema que escolheu falar. Abrimos, oxigenados, olhando para o presente, a escuta para ela.

Comitê do Carrefour: a crise de confiança entre a intelectualidade negra e as massas – Por Ndeye Fatou Ndiaye

Quando o comitê composto por intelectuais negros do Carrefour foi anunciado, surgiu uma tempestade de explicações e justificativas por parte dos seus membros. O primeiro fato que chamou atenção é esse mesmo: nunca foi preciso dar satisfação à opinião pública simplesmente por ter aceitado um emprego.

O Carrefour é uma multinacional francesa. E como toda empresa francesa, ela tem em seu DNA o imperialismo e o colonialismo. Exemplo disso foi o que aconteceu na África logo após as independências. Os líderes panafricanistas entendiam muito bem que a partilha do continente foi feita longe da África e sem os africanos. A principal sequela que os colonizadores nos deixaram foi a nossa desunião, potencializada pelas linhas arbitrárias das nossas fronteiras e das nossas diferenças culturais. Em contrapartida, iniciativas muito importantes foram planejadas para a erradicação de todas as barreiras culturais, morais e físicas. O próprio Kwamé Nkruma dizia: “É claro que temos nós mesmos as soluções para nossos problemas. Divididos somos fracos e vulneráveis. Mas unidos, conseguiremos unir forças que podem dissuadir o mundo inteiro.” 

Segundo o escritor nigeriano Wole Soyinka, o modelo fragmentar para reinar foi utilizado e a  Europa precisava manter o continente dividido para poder perpetuar sua hegemonia e influência. Foi nesse contexto que ela instalou dirigentes que defenderam seus interesses a qualquer custo, foi nesse contexto que Sekou Toure, Tomas Sankara, Patrice Lumumba, Amílcar Cabral e muitos outros foram eliminados.

Uma das principais sequelas decorrentes do insucesso do pan-africanismo é a ruptura de confiança entre os africanos e o continente paga até hoje um preço bem alto: 60 anos depois, a perpetuação do Modus Operandi da colonização em nossas terras. A multinacional Carrefour tem em seu currículo dezenas de denúncias de racismo contundentes, muitas delas bem fundamentadas e documentadas. A Empresa nunca tomou nenhuma providência nos casos anteriores. Pelo contrário, procurou sempre desacreditar as vítimas.

Logo após o odioso e brutal assassinato do nosso irmão João Alberto, os movimentos de protestos e boicotes foram muito fortes, foi unânime que finalmente encontramos uma saída para a unificação e potencialização das lutas antirracistas. O Carrefour, por sua vez,  contra-atacou e utilizou como arma a intelectualidade negra, que tem vivência e conhecimento profundo sobre o racismo estrutural no Brasil. No entanto, essa mesma intelectualidade, com todo o seu repertório, preferiu vestir a camisa da empresa do que ganhar a confiança do seu povo.

A revolução racial do Brasil não pode acontecer sem sua classe intelectual, mas essa classe não conseguiu ainda encontrar seu povo. Pelo contrário, eles são fagocitados pelo racismo estrutural.

O ano 2020 foi um marco quando se trata das lutas raciais no mundo inteiro, movimentos antirracistas protagonizados por pessoas negras travaram batalhas históricas. Mas por aqui a nossa batalha ainda é criar e manter uma confiança entre nós. Tivemos grandes conquistas, algumas azedadas pela crise de confiança que o Carrefour importou do colonizador.

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