Em NY, estilista observa cultura negra e racismo de uma nova perspectiva

Kerby Jean-Raymond desfila na histórica locação que abrigou a segunda maior comunidade afro-americana livre dos EUA

por ROBIN GIVHAN – WASHINGTON POST no Estadão

Modelos no backstage do desfile do verão 2019 da Pyer Moss, marca que vem fazendo um tipo de moda em que a cultura negra é observado de um ponto de vista incomum Foto: Landon Nordeman/The New York Times

O estilista Kerby Jean-Raymond acredita na força da moda de inspirar, provocar e educar. Ele entende que o simples ato de se vestir pode ser político. E enquanto esse ritual matinal não é tão poderoso quanto lançar uma votação, ele também pode encorajar alguém.

Sua coleção do verão 2019 para a Pyer Moss, intitulada Americano, Também: Lição 2, se conecta ao atual clima cultural em que pessoas de cor vem sendo crescentemente consideradas fora da norma, fora da família americana. Sentinelas tomam conta dos portões. E a entrada é apenas para convidados.

Jean-Raymond examina especificamente a maneira como pessoas negras são colocadas no papel de “outro”. Elas não são a face padrão dos Estados Unidos; elas são a face que a América gosta de exibir como prova de sua diversidade, uma evidência de sua abertura, um testamento de seu espírito de boas-vindas.

Um dos looks do verão da Pyer Moss, com uma imagem que subverte o imaginário das madonnas clássicas Foto: Angela Weiss / AFP

Pessoas negras não são simplesmente americanas. Elas são também americanas. E sua mera existência em espaços públicos vem sendo demonizada como uma ameaça latente que precisa ser interrompida antes que pessoas negras tenham a audácia de acreditar que elas possam existir em qualquer lugar, confortavelmente, com confiança, livremente.

O espírito da liberdade, extraído da cultura negra, permeia essa coleção. Não os elementos chiques e de alto padrão que ajudaram a definir música, esportes ou cinema, mas seus prazeres mundanos e cotidianos. As roupas e a gloriosa harmonia de um coral gospel de robes brancos com tênis Reebok evocam o papel da igreja e da convivência no culto de domingo – e talvez dos grupos de estudos bíblicos durante a semana, dos encontros de oração, dos casamentos e ensaios de coral. As estampas e formas fazem referência a refeições ao ar livre e férias de verão, a jogos coletivos sem pretensão e a sessões de fofoca, e ao amor de um pai ou uma mãe olhando nos olhos de uma criança.

Parte do coral de 40 pessoas que entoou a trilha ao vivo do desfile da Pyer Moss, marca com que o estilista Kerby Jean-Raymond vem silenciosamente construindo uma carreira como uma espécie de consciência de comunidade na moda Foto: Landon Nordeman/The New York Times

Isso não é streetwear, mas roupas sobre a vida real e a humanidade de gente comum que é ao mesmo tempo universal e única.

Jay-Raymond, que é um dos finalistas da competição do CFDA-Vogue Fashion Fund, apresenta vestidos brancos e saias fluidos e um longo negro que evoca os robes usados nos corais e as vestes eclesiásticas.

Calças e vestidos ganham brilho com pinturas de rostos marrons com expressões de alegria e serenidade. Um cinturão branco – não uma camiseta descartável ou uma casual jaqueta bomber, mas um emblema da tradicional formalidade masculina – é bordado com a pergunta: “Nos vê agora?”. Suas roupas têm uma mensagem provocadora, mas também são desejáveis num nível puramente estético, indulgente.

A passarela de Jean-Raymond ainda fala sobre a atual natureza colaborativa da moda. Então, sim, existe um tênis assinatura – um modelo de cano alto, tecnológico com um pequeno fator cool, feito em parceria com a Reebok. Essa colaboração inclui ainda as leggings com estampas abstratas e um corta vento similar que me traz à mente colchas de família.

Um longo branco fluído e uma das colaborações da Pyer Moss, no caso com a marca Fubu, usada pelo menino Foto: Maria Valentino, MCV Photo/The Washignton Post

O logo da Fubu com sua história de empreendedorismo “for us, by us” (“para nós, por nós”) aparece numa série de peças. Algumas modelos usavam sapatos de Aurora James, que por meio de sua coleção Brother Vellies, faz um esforço por ressaltar as habilidades e estética dos sapateiros de países como Quênia e Etiópia. A arte dos pijamas e vestidos-toga eram do artista do brooklyn Derrick Adams, cujo trabalho explora a forma como raça e classe criam ideias de como nos envolvemos como nosso tempo livre.

Como revelar as camadas de história e cultura e criatividade construídas por gerações que conspiraram para que surgisse um vestido roxo iridescente com uma imagem de um homem negro segurando um bebê em seus braços? Há pista dos glamourosos retratos de Mickalene Thomas, referências subversivas às madonnas clássicas, à beleza cotidiana da fotografia de James Van Der Zee e à confiança vista em tantas meninas de bairro que não precisam de uma revista glamourosa ou de algum influenciador de Instagram para lhe dizer como se vestir.

A entrada final dos modelos na passarela da Pyer Moss, montada no Weeksville Heritage Center, no Brooklyn, no sábado, 8 de setembro Foto: Angela Weiss / AFP

Historicamente a coleção é baseada no Livro Verde do Motorista Negro, um manual de estrada dedicado a ajudar afro-americanos a viajar em segurança pelo país, com direções de restaurantes e hospedarias onde eram bem vindos, assim como as cidades traiçoeiras para negros ao anoitecer.

A coleção, entretanto, conversa com os dias de hoje, uma época em que americanos brancos chamam a polícia ao verem uma pessoa negra sentada num Starbucks, dormindo na área comum de um dormitório estudantil, prospectando votos ou simplesmente existindo. Como o bordado de uma das camisas diz: “Stop calling 911 on the culture” (“Pare de ligar para a emergência por cultura” em tradução livre).

Jay-Raymond apresenta seu trabalho em um espaço seguro, não desprovido de diálogo sobre temas difíceis. Tudo sobre a coleção do verão 2019 da Pyer Moss era sobre se envolver num tópico sujo. Mas ele estabeleceu os termos e calibrou a escala. Convidou o público ao Weeksville Heritage Center, no bairro de Brownsville, no Brooklyn. Fundado em 1938, Weeksville foi a segunda maior comunidade afro-americana livre na era pré-Guerra Civil dos EUA.

Com a industrialização e o desenvolvimento crescentes, a vila correu risco de se perder na história até ser redescoberta nos anos de 1960 e resgatada com apoio da comunidade. Suas três casas restauradas fazem parte do Registro Nacional de Lugares Históricos do país.

Jean-Raymond pede a sua platéia que imagine que Weeksville sobreviveu. Que considere que aos seus moradores e descendentes, a seus vizinhos, e aos vizinhos dos vizinhos seja permitido simplesmente serem americanos. Mais amplamente, Jean-Raymond permite a si mesmo vislumbrar o que significa viver plenamente, maravilhosamente e livremente.

Outro look do verão 2019 da Pyer Moss, um dos destaques da Semana de Moda de Nova York Foto: Angela Weiss / AFP

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