Em SP, risco de morte de negros por covid-19 é 62% maior em relação aos brancos

Dados do boletim epidemiológico da Prefeitura de São Paulo do dia 30 de abril apontam que o risco de morte de negros por covid-19 é 62% maior em relação aos brancos. No caso dos pardos, esse risco é 23% maior. Especialistas apontam que questões socioeconômicas, como saneamento básico precário, insegurança alimentar e dificuldade de acesso à assistência médica, aumentam o risco de adoecer e morrer. Nos Estados Unidos, por exemplo, os negros também estão mais expostos ao novo coronavírus.

As estatísticas fazem parte do 3° Boletim Covid-19 da Secretaria Municipal de Saúde. O documento traz dados e análises referentes à situação epidemiológica e ações para o enfrentamento da doença até o dia 24 de abril. Essa parte da pesquisa considera o número de óbitos (suspeitos e confirmados) por covid-19 entre brancos, pretos, amarelos, pardos e indígenas, de acordo com a classificação de raça/cor do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) utilizada pelo órgão paulistano. Considerando-se 100 mil habitantes na capital, a taxa de mortalidade por idade é de 9,6 para brancos, 15,6 para negros e 11,88 para pardos.

O Estado ouviu especialistas de várias áreas, entre ativistas, virologistas, infectologistas, médicos e biomédicos. Brancos e negros. Embora análises estratificadas por etnias sejam escassas no Brasil, estudiosos dizem que a desigualdade social é também um fator a mais de exposição à doença. Questões sociais e históricas ajudam a explicar a presença dos negros como grupo de risco da covid-19.

“Piores condições de vida e trabalho determinam o maior risco de adoecimento e morte, não apenas pela covid-19, mas também por outras doenças. A dificuldade de acesso aos serviços de saúde é um fator crucial para aumentar o risco de complicações e óbitos”, afirma a biomédica Joilda Silva Nery, professora adjunta do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e integrante do grupo de trabalho Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).

Essa dificuldade de exercer o direito à saúde não está localizada apenas no momento dramático de procurar o hospital neste momento, com UTIs lotadas em todos os Estados. De acordo com a professora Márcia Alves dos Santos, pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o problema é estrutural e foi identificado, por exemplo, no estudo do IBGE chamado “Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população”, de 2019.

“A população negra demonstrou os piores indicadores no que tange à estrutura econômica, mercado de trabalho, padrão de vida e distribuição de renda e educação”, enumera. “Esses indicadores corroboram o racismo, que é um determinante em saúde. E isto está refletido no boletim epidemiológico da prefeitura de São Paulo”, completa.

A médica Denize Ornelas traduz os índices do IBGE para o dia a dia. “Uma pessoa negra não consegue fazer o isolamento social quando está doente porque tem uma casa menor que as casas de classe média, com menos cômodos, um banheiro só e até falta de água. Com isso, uma pessoa infectada traz maior risco de contaminação das pessoas ao redor”, diz a diretora de comunicação da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade.

Celso Athayde, um dos criadores da Central Única das Favelas, acrescenta que a população negra tem poucas condições de seguir a quarentena. “É natural que os negros sofram as maiores baixas por vários motivos. Somos 78% da base da pirâmide, que está exposta desde o início da pandemia para o Brasil não parar, como frentistas, garis, balconistas de farmácia ou caixas de supermercado. O colapso do sistema acerta em cheio os mais vulneráveis, aqueles que têm cor”, avalia.

Joilda acrescenta outro exemplo prático: uma campanha promovida por professores e estudantes do Instituto de Saúde Coletiva da Ufba que distribuiu milhares de kits de higiene e lanches para pessoas em situação de rua. Pesquisa do Projeto Axé em parceria com a Ufba, o Movimento Nacional da População Rua e a Defensoria Pública da Bahia aponta que 58% da população de rua em Salvador são negros ou pretos; 34% são pardos e apenas 5% são brancos. “Como garantir que fiquem em casa, lavem as mãos sem acesso a direitos básicos como condições dignas de moradia e saneamento básico, sem falar da alimentação?”, questiona a especialista.

O médico e infectologista da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Paulo Olzon sugere outro recorte, diferente da questão étnica. “(O maior risco de morte entre os negros) pode não ser em relação à cor, mas sim em relação à situação socioeconômica. Provavelmente os que moram em situação pior e ganham menos são negros e pardos, se comparados aos de cor branca”, argumenta.

Luís Eduardo Batista, pesquisador do Instituto de Saúde da Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo e do Grupo de Trabalho Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) destaca o contexto histórico do impacto das epidemias sobre a população negra.

“Quando estudamos a história das endemias e das epidemias no Brasil com a lente da determinação social do processo saúde, doença e morte, percebemos que a população negra foi sempre uma das mais duramente impactadas e na pandemia da covid-19 não será diferente. O que nos cabe agora é mitigar esse impacto é é por isso que várias organizações da sociedade civil estão atuando para proteger e garantir o direito de todas e todos à saúde”, afirma.

Outras doenças
Infectologistas apontam que a população negra é um dos grupos de risco também em função das comorbidades que atingem esse segmento em maior número. São os casos da hipertensão e da diabetes e, principalmente, a anemia falciforme, todas elas fatores de risco para o adoecimento e complicações por covid-19.

De acordo com a Secretaria Municipal de Saúde, as comorbidades mais presentes em idosos falecidos por covid-19 são a cardiopatia crônica, diabetes, pneumopatias crônicas, condições neurológicas e insuficiência renal crônica. Em óbitos de menores de 60 anos, os mesmos fatos se observam, com destaque para obesidade, doença renal e imunossupressão. Se o paciente tiver mais que 60 anos, for hipertenso e diabético, o risco é potencializado. Se for cardiopata ou asmático, a situação é ainda mais grave.

“O que deve ter havido é que a hipertensão é mais frequente entre os negros. Provavelmente, tem relação com comorbidades da raça negra do que propriamente o fato de o paciente negro ter mais chance de ter a covid-19. Mas teríamos de fazer uma análise dos pacientes para saber se realmente eram hipertensos, diabéticos e assim por diante”, afirma Clóvis Arns da Cunha, coordenador científico da Sociedade Brasileira de Infectologia.

A mesma posição é defendida por Emanuelle Goes, pesquisadora do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para a Saúde da Fiocruz. “A população negra (soma de pretos e pardos) apresenta maior exposição às morbidades elencadas para grupo de risco, como hipertensão, diabetes, obesidade e câncer”, argumenta. “Mas, antes de tudo, o racismo institucional neste contexto de pandemia vai agravar a situação das pessoas negras no momento da procura pelo serviços de saúde. A consequência disso é uma maior taxa de mortalidade para esse grupo racial”, explica.

O virologista Paulo Eduardo Brandão, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (USP), também descarta fatores genéticos na maior incidência da covid entre os negros. “Já acompanhei discussões sobre o tema e não existem fatores genéticos”, afirma. “É possível afirmar, quase com certeza, que o maior risco entre os negros não tem relação com a raça”, corrobora Clovis Arns da Cunha.

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