Em 2011, no auge do fluxo de congoleses para o Rio de Janeiro, a assistente social Aline Thuler, coordenadora-geral do Programa de Atendimento a Refugiados da Cáritas RJ recebeu o jovem Moïse Kabagambe, de 14 anos. Como muitos, ele veio fugindo da guerra civil que colocara em risco sua família e tirara a vida de parentes de sua mãe.
No ano passado, durante a pandemia, o estudante de arquitetura continuou frequentando a orientação profissional oferecida pela instituição. Moïse foi brutalmente assassinado no último dia 24 ao ser espancado num quiosque, na orla do Rio de Janeiro. De acordo com a embaixada da República Democrática do Congo, Moïse é a quinta vítima assassinada no país desde 2019, sendo três mortes no Rio, uma em São Paulo e uma em Brasília.
À CNN a embaixada da República Democrática do Congo informou ainda que está em contato com familiares do estudante, que cobra um pronunciamento do Itamaraty e que vai exigir respostas sobre as investigações também dos outros casos de congoleses mortos no Brasil. O assassinato de Moïse está sendo investigado pela Polícia Civil do Rio de Janeiro.
Equipes da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), da Agência da ONU para as Migrações (OIM) no Brasil e do PARES Cáritas RJ também informaram que estão acompanhando a investigação. As organizações divulgaram uma nota apresentando “sinceras condolências e solidariedade à família de Moïse e à comunidade congolesa residente no Brasil”.
De acordo com Aline Thuler, Moïse chegou em 2011 ao Brasil, participou de algumas aulas oferecidas pela Cáritas e logo aprendeu português. Quis entender-se carioca, mas, como outros africanos que vieram para cá, aprendeu uma palavra nova: racismo.
“Muitos que vem do Congo, de Angola, sofrem racismo e o conhecem pela primeira vez no Rio de Janeiro. Eles não conhecem esse tratamento diferente. Primeiro perguntam se é porque não são brasileiros. Depois, relatam xingamentos e entendem que é porque são negros”, afirmou a assistente social.
A Cáritas oferece há 45 anos assistência humanitária a refugiados no Rio e em outros lugares do país. A experiência de Thuler acolhendo refugiados mostra que há um preconceito enraizado com africanos. “Há um estranhamento, como se eles vivessem em savanas em meio aos leões. Mas não é assim, não podem ser tratados como seres humanos menores”.
Como Moïse, muitos procuram a Cáritas para conseguir estudar ao chegar no Brasil e ter uma oportunidade de trabalho. “Ele me disse, no ano passado, que estava fazendo trabalhos como “freela”. Muitos refugiados são contratados em regimes que não oferecem garantias trabalhistas aqui no Brasil”, afirmou a coordenadora da Cáritas.
Aline Thuler contou que o ainda menino veio para o Rio de Janeiro com dois irmãos em um avião que saiu da República Democrática do Congo. Uma rota de dor e medo que se repete, primeiro como tragédia, depois como permanência dela.
O Congo e Angola são países que fazem fronteira no Sul da África e de onde saíram a maior parte dos negros que foram escravizados no Rio de Janeiro entre os séculos XVI e XIX: cerca de 720 mil só no século XVIII, segundo dados da Universidade de Emory, dos Estados Unidos.
Já na década de 1990, o fluxo de angolanos cresceu na cidade do Rio, com os fugitivos da guerra daquele país. A crise no Congo, vizinho, fez com que os dois países representassem o maior número de refugiados em solo carioca até o começo da década de 2010. Estão, hoje, estabelecidos em bairros como Brás de Pina e Madureira, na Zona Norte em cidades da Baixada Fluminense.
“A mãe do Moïse não consegue nem falar. Amigos e familiares estão abalados, mas gratos pela repercussão. É a história de um refugiado, que não pode e não será esquecida”, resumiu.
Segundo o Painel do Ministério da Justiça, desde 2016, foram quase 900 congoloses que pediram refúgio no Brasil, sétimo país que mais tem esse tipo de solicitação. A maioria dos congoleses mora no Rio de Janeiro e em São Paulo.
Resposta do Itamaraty
Em nota, o Itamaraty lamentou a morte de Moïse e expressou indignação com o assassinato. O Ministério das Relações Exteriores ainda afirmou que espera que “o culpado ou os culpados sejam levados à Justiça no menor prazo possível”.
Veja a íntegra da declaração:
“O Itamaraty lamenta profundamente o ocorrido e compartilha o pesar da família da vítima.
A obtenção de refúgio, no Brasil, é disciplinada pela Lei 9.474, de 22 de julho de 1997. Cada demandante de refúgio, independentemente de sua nacionalidade, tem sua solicitação examinada individualmente pelo Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), órgão interministerial presidido pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), que poderá dispor de informações adicionais sobre o tema.
A apuração dos fatos e a persecução criminal dos responsáveis competem aos órgãos de segurança e judiciários no Rio de Janeiro, aos quais poderão ser dirigidas consultas adicionais sobre o caso.
O Itamaraty expressa sua indignação com o brutal assassinato e espera que o culpado ou culpados sejam levados à Justiça no menor prazo possível.”
Leia também:
‘Mataram aqui como matam em meu país’, diz mãe do congolês Moïse Kabamgabe