Empoderamento infantil: feminismo e equidade para crianças

O movimento feminista, muito além das questões específicas das mulheres, discute também racismo, sexualidade e direitos LGBT, Um dos temas recentes abordados por feministas, que lutam cada vez mais por inclusão e abrangência na militância, é o papel das crianças na sociedade 

Por Jarid Arraes

O movimento feminista contemporâneo abarca uma grande variedade de debates: muito além das questões específicas das mulheres, várias vertentes do feminismo discutem também racismo, sexualidade e direitos LGBT, para citar alguns exemplos. Um dos temas recentes abordados por feministas, que lutam cada vez mais por inclusão e abrangência na militância, é o papel das crianças na sociedade e quais são os tipos de violência vividos por elas – sobretudo pelas garotas.

Para problematizar o sexismo e a divisão de papéis de gênero na infância, a educadora infantil Olívia Coelho criou um meio por onde pudesse divulgar suas ideias: a página Empoderamento Infantil no Facebook, dedicada a compartilhar métodos para o empoderamento das garotas. “A decisão de focar nas crianças – especialmente nas meninas – partiu da necessidade de criar coletivamente estratégias e alternativas para empoderar, ou seja, libertar as meninas da opressão de gênero que sofrem por terem nascido meninas”, explica.

Em pouco tempo, a página foi divulgada por feministas pela internet e, assim, duas novas administradoras entraram na equipe: a profissional autônoma Jéssica Castency e a estudante de Letras Carina Castro. Embora nenhuma seja mãe, elas afirmam que desejam a maternidade um dia e o trabalho que desenvolvem com crianças foi capaz de proporcionar experiência e vontade de fazer a diferença no mundo infantil. “Já trabalhava com literatura infantil e política; ter isso direcionado ao gênero está sendo um grande aprendizado para mim e é também um grande prazer disseminar esta ideia, que creio ser essencial para o feminismo”, conta Castro.

Fazendo uso de ferramentas online, o trio divulga textos, sugestões de material e notícias sobre machismo, racismo, sexualidade e outros temas importantes, sempre voltados para uma ótica infantil. É interessante conhecer essa perspectiva, especialmente para aqueles que acreditam que as crianças não entendem o mundo e não fazem diferença em sociedade.

“Eu não sou princesa, sou uma pessoa normal”

Uma das maiores dificuldades enfrentadas pelo feminismo é a naturalização de valores machistas em nossa cultura e as divisões binárias em coisas corriqueiras, como roupas ou brinquedos. A maioria dos pais, responsáveis e educadores ainda separa o mundo entre “coisas de menina” e “coisas de menino”, criando um muro quase intransponível entre os gêneros. Na sessões de brinquedos infantis, o mundo feminino é todo cor de rosa, repleto de bonecas, acessórios domésticos e objetos relacionados à beleza. Quando um menino se interessa por algo direcionado às meninas, ou quando uma garota não quer vestir roupas femininas, o desespero se propagada entre os adultos, que não conseguem lidar com essas pequenas transgressões. Mesmo após tantas décadas de luta contra o machismo, essa ainda é uma realidade dominante.

“Ao observar e interagir com as meninas de 1 a 6 anos, percebi que todos os estímulos e influências direcionados à elas tinham como objetivo tratá-las como ‘princesas delicadas’, constantemente reforçando o estereótipo de inferioridade do gênero feminino. Enquanto para os meninos são direcionados jogos, brinquedos e atividades que procuram desenvolver seu raciocínio lógico e habilidades físicas, como se as meninas fossem ‘muito delicadas’ ou ‘não fossem ter interesse’ por jogos de montar, por exemplo. Uma vez ouvi de uma menina de 4 anos: ‘eu não sou princesa, sou uma pessoal normal’”, relata Olívia Coelho. Para ela,o os adultos reforçam esses valores mesmo que não percebam – por isso, focar no empoderamento infantil significa oferecer às meninas uma chance de escolher seu próprio papel e resistir os paradigmas que as tratam como frágeis e inferiores.

Segundo as feministas da página “Empoderamento Infantil”, as crianças fazem parte de um grupo que sofre violência física, psicológica e social, sendo explorado por suas vulerabilidades. Nessa ótica, a sociedade nega às crianças o direito a liberdade de pensamento e autonomia, menosprezando suas opiniões e desejos mesmo dentro de suas limitações. Apesar de haver tipos universais de violência cometida contra crianças – como por exemplo a violência sexual –, as três amigas entendem que crianças do sexo feminino estão mais expostas a abusos e, por isso, trazem o foco para os debates de gênero.

No entanto, as crianças ainda fazem parte de um grupo heterogêneo e diverso. Para compreender essa pluralidade e enfrentar a violência, é preciso de uma ótica que aborde todas essas especificidades. A abordagem da página, especificamente, é baseada no Feminismo Intersecional, que reconhece os variados contextos infantis. Segundo essa visão, uma criança negra não terá uma vivência igual a de uma criança branca, por exemplo, e ao juntarmos fatores como situação econômica, presença de deficiência ou contexto familiar, esse leque de interpretações se abre ainda mais.

“Tentamos o máximo possível ver da forma como é, sem negar a realidade, e levar as informações corretas sobre como esses fatores afetam nas vidas das crianças e de como isso é apenas um reflexo da nossa cultura. Postamos todo e qualquer assunto que seja direcionado a educação e vida de nossas crianças, sempre no intuito de disseminar como cada ser é um ser único, de como cada grupo social apesar de suas coisas em comum tem e merece um espaço específico, ainda mais quando se trata de camadas mais excluídas da sociedade. O feminismo interseccional é uma vertente que lida muito bem com essas questões e representa o que procuramos trazer em relação a luta e empoderamento infantil e feminino, buscando equidade, trazendo para cada grupo o que necessita”, pontua Jéssica Castency.

Lei da Palmada e educação feminista

Bernardo Boldrini foi uma criança vítima de violência cometida por pais e responsáveis. Aos 11 anos foi encontrado morto, enterrado nas margens de uma estrada no interior do Rio Grande do Sul, e virou símbolo da “Lei Menino Bernardo”, nº 13.010. Popularmente conhecida como “Lei da Palmada”, ela tornou ilegais os castigos físicos contra crianças depois de ser sancionada pela presidenta Dilma Rousseff em Junho de 2014.

Embora a lei esteja em vigor, ainda são muitos os pais e familiares que rejeitam a medida de proteção e continuam a bater em crianças como forma de punição por comportamentos considerados inadequados. Para as responsáveis pela página Empoderamento Infantil, a lei é necessária e não se pode admitir que qualquer tipo de violência seja praticado contra crianças: “Nos posicionamos completamente a favor da Lei da Palmada, acreditamos que mães, pais e educadores precisam reavaliar seus métodos de ‘punição e castigo’ – já nos manifestando contra tais atitudes -, para que cada vez menos as crianças sejam expostas a violência. Acreditamos que a omissão da responsabilidade pela violência direcionada à criança (seja física, psicológica, social, etc.) é um desrespeito”.

Para elas, os moldes educativos no contexto doméstico precisam ser urgentemente mudados e os cuidadores precisam ser conscientizados sobre o quanto a violência é traumática. “Não é porque apanhei e isso não me afetou no futuro – ou eu acho que não – que a criança em que bato não se afetará, não ficará traumatizada. A estrutura educacional e que é normatizada é falha e grosseira, quando a Lei da Palmada foi aprovada mesmo após o menino Bernardo ter sido morto, inúmeras pessoas se colocaram contra, inclusive jornalistas de grandes mídias, ou seja, não existe algo de muito errado em ser contra uma lei que não permite uma criança de apanhar? Chega a ser um absurdo ouvir alguém defender bater no seu filho”, afirma Castency.

Carina Castro ainda acrescenta: “A necessidade da violência na educação entre pais e filhos – que não deveria ser apenas uma relação de adestramento, mas afeto e aprendizado mútuo – revela a total falta de tato, sensibilidade e diálogo nessas relações e, justamente essa falta de diálogo e informação, é o que gera preconceitos e impede muitas questões importantes de serem tratadas”.

Como enfrentamento à violação da dignidade infantil, as ativistas acreditam em um modelo de educação feminista, que transmita valores de equidade levando em consideração a enorme diversidade de correntes de pensamento, rejeitando qualquer tipo de doutrinação – algo possível independente da idade da criança. “Feminismo é aprendizagem, não ensino”, afirma Olívia categoricamente. Com a prática desses novos valores, a equipe da página acredita que o objetivo principal é empoderar as meninas; dessa forma, todas as crianças ganham em liberdade e respeito.

Como forma de auxiliar pais e responsáveis nesse processo de ressignificação educativa, o trio investe no compartilhamento de material e exemplos inspiradores. “Compartilhamos meninas que superam os padrões que se esperam de uma menina, meninas que possuem autonomia para realizar projetos voltados para o cuidado com outras meninas e mulheres, meninas inspiradoras, enfim, estratégias para o empoderamento voltado para as próprias meninas – pois temos um público adolescente grande – mães e pais, educadores e demais interessados, também mostrando que meninas podem sim e fazer coisas “como uma menina” não é algo negativo ou inferior, como a visão de mundo machista e misógina quer que acreditemos”, diz Castro.

Essa revolução na forma de encarar a educação infantil também deve incluir a discussão de questões como a vacina contra o HPV para meninas, a cultura do estupro e o padrão de beleza, trabalho também desenvolvido na página. Por mais que as pessoas não consigam relacionar com facilidade, a permissividade da violência contra crianças é parte de uma mentalidade retrógrada que impede o bem estar dessa geração em muitos aspectos. Portanto, lutar pela dignidade infantil é algo que vai muito além da Lei da Palmada: o respeito pelas crianças deve ter raízes fortes que promovam o respeito pelo gênero feminino, pois assim meninas e meninos crescerão em um contexto livre de violência, abandonando estruturas de hierarquização e compreendendo que todas as pessoas devem ser respeitadas, independente do gênero, raça e idade.

O potencial infantil na mudança do mundo

A frase “esse assunto não é para sua idade” esconde, em muitos casos, uma lógica de desvalorização da inteligência e do potencial infantil. Privar crianças do conhecimento é uma forma de negligência, uma atitude que subestima a capacidade intelectual e transformadora das crianças enquanto indivíduos socioculturais e políticos. Para as ativistas, nunca é cedo demais para que uma educação livre de preconceitos seja apresentada às crianças. É possível mostrar temas pertinentes e complexos fazendo uso de ferramentas sutis e apropriadas para elas, como desenhos, livros, filmes e brinquedos. “As crianças entendem muito mais do que acreditamos que elas entendam, o tempo inteiro elas estão absorvendo o que as rodeia. Elas necessitam e tem sede de entender as coisas como são e o que podemos fazer para ajudá-las, como guias que somos, é abrir essas ideais, instigá-las a ter curiosidade de aprender sobre esses contextos, sobre quem elas são no mundo e o que representam”, sugere Jéssica.

Se as crianças vivem no mesmo mundo que os adultos, cercadas pelas mesmas informações e valores, é muito coerente concluir que elas precisam aprender o que é prejudicial a elas e aos outros desde cedo. Caso contrário, também reproduzirão machismo, homofobia e racismo na vida adulta. É importante lembrar que ideias preconceituosas não partem somente de casa, elas estão por toda a parte, da escola à televisão – por isso, embora seja fundamental contar com pais e cuidadores conscientes dessas questões, ainda é possível que essas crianças tragam para casa questionamentos da escola ou de um círculo de amigos. É aí que entra a necessidade de cooperação de todas as pessoas, mesmo aquelas que não são responsáveis por crianças; afinal, a mente infantil é surpreendente e uma criança pode desencadear mudanças em sua residência, dentro de sua própria família.

“Uma criança pode fazer toda a diferença no mundo, como a Adora Svitak, que escreveu e publicou um livro aos 6 anos de idade. Sua mãe e pai acreditaram no seu potencial, enquanto criança, e lhe forneceram suporte para seguir com as atividades literárias, já que gostava daquilo. Devemos dar liberdade para que as crianças possam escolher seus próprios papéis e lugares no mundo, sem interferência opressora de adultos que julgam ter mais conhecimento da idade da criança do que a mesma. Crianças, geralmente, possuem mais imaginação e menos medo de errar, características importantíssimas para o surgimento de ótimas ideias”, afirma Coelho. E continua: “Adultos pouco ouvem as crianças, levam a sério suas opiniões e ideias. As crianças já fazem toda a diferença, nós, adultos que perdemos a sensibilidade de escutar e perceber quantas ideias geniais as crianças podem nos apresentar só sendo quem são. Espero, sinceramente, que a expressão ‘que nem criança’ não seja entendida como algo ruim, pois se soubéssemos pensar que nem crianças, agir mais que nem crianças, acreditar nos nossos ideais que nem crianças, talvez não entrássemos em conflito – com os outros e com nós mesmos – tão frequentemente”, finaliza.

Pensando em sintonia com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a responsabilidade pelas crianças é de toda a sociedade. Por isso, todos precisamos repensar a forma como enxergamos meninas e meninos. Oferecer possibilidades para que ambos se desenvolvam livres de machismo, homofobia, transfobia, racismo e outras formas de discriminação deve ser prioridade de todos os adultos, pois uma educação que promova a equidade é essencial. As mulheres da página “Empoderamento Infantil”, pelo menos, lutam com convicção para que essa seja uma realidade cada vez mais presente.

Fonte: Revista Fórum 

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