“Enegrecer o feminismo”: movimentos de mulheres negras no Brasil

Texto de Bárbara Araújo.

As mulheres negras não existem. Ou, falando de outra forma: as mulheres negras, como sujeitos identitários e políticos, são resultado de uma articulação de heterogeneidades, resultante de demandas históricas, políticas, culturais, de enfrentamento das condições adversas estabelecidas pela dominação ocidental eurocêntrica ao longo dos séculos de escravidão, expropriação colonial e da modernidade racializada e racista em que vivemos.

(Jurema Werneck em “Mulheres Negras: 
um Olhar sobre as Lutas Sociais e as Políticas Públicas no Brasil”)

É importante que desnaturalizemos palavras usadas tão corriqueiramente como “mulher” e “negra”. As

mulheres negras são mulheres negras porque são consideradas assim histórica, sociológica e culturalmente. O discurso racista e o discurso sexista têm usado referências biológicas tais como o fenótipo, a cor da pele e os órgãos genitais para hierarquizar seres humanos e inferiorizar as mulheres e os negros. Em reação a isso, os grupos marginalizados por esse processo vem se organizando ao longo da história para lutar contra sua subalternização.

angela davis

Angela Davis, ativista negra norte-americana.

A combinação de preconceitos como o racismo e o machismo tem sido pensada através dainterseccionalidade, conceito que se refere mais amplamente às articulações entre a discriminação de gênero, a homofobia, o racismo e a exploração de classe. Ele teve origem nas reivindicações de feministas negras, judias, lésbicas, operárias, etc., que demandaram atenção para a multiplicidade contida na ideia de “mulher”, argumentando que a opressão não poderia ser entendida unicamente pelo viés da diferença de gênero.

[+] Vozes-Mulheres de escritoras e intelectuais negras

A partir da década de 1980, o chamado “feminismo da diferença” procurou entender como as diversidades culturais, raciais e de classe contribuíram para as distintas experiências das mulheres. Essa perspectiva complexificou-se a partir do surgimento da teoria do ponto de vista feminista (“feminist standpoint”), segundo a qual

a experiência da opressão é dada pela posição que ocupamos numa matriz de dominação onde raça, gênero e classe social interceptam-se em diferentes pontos. Assim, uma mulher negra trabalhadora não é triplamente oprimida ou mais oprimida do que uma mulher branca na mesma classe social, mas experimenta a opressão a partir de um lugar, que proporciona um ponto de vista diferente sobre o que é ser mulher numa sociedade desigual, racista e sexista.

(Luiza Bairros em “Nossos feminismos revisitados”)

Na história brasileira, encontramos organizações específicas de mulheres negras desde o início do século XX. A  Sociedade de Socorros Mútuos Princesa do Sul, fundada em 1908, e a Sociedade Brinco das Princesas, de 1925, respectivamente em Pelotas e São Paulo, eram formadas estritamente por mulheres negras. Elas integraram também uma grande parcela da Frente Negra Brasileira (FNB), fundada em 1931 e considerada a entidade negra mais importante do país na primeira metade do século XX, tendo arregimentado mais de 20 mil associados em diversos estados. Ainda nos anos 30 foi fundada a primeira associação de trabalhadoras domésticas no estado de São Paulo, que teve como principal representante a ativista Laudelina Campos Melo, que também integrava a FNB. Já em 1950, foi fundado o Conselho Nacional da Mulher Negra, formado por mulheres vinculadas à cultura, às artes e à política. Infelizmente os registros da atuação deste conselho são bastante escassos.

lelia

Lélia Gonzalez

É a partir dos anos 1970 que as organizações de mulheres negras ganham força no Brasil, reivindicando duplamente o movimento negro e o feminismo. A partir desse período, os movimentos de mulheres negras procuraram explicitar a diferença entre as formas de mulheres e homens negros sentirem a discriminação racial, acrescentando a problemática do gênero à questão do racismo. As feministas negras denunciavam, por um lado, posturas machistas na militância negra e, por outro, as desigualdades e o racismo presentes no movimento de mulheres. Lélia Gonzalez foi uma das pioneiras a chamar atenção para essa interseção de preconceitos. Como muitos intelectuais negros, Lélia combinou uma intensa militância de rua a uma atividade de produção intelectual militante.

Em 1988 foi criado o GELEDÉS, organização que visa à valorização das mulheres negras e ao combate ao racismo. No ano 2000, mais de 20 entidades de mulheres negras pelo Brasil, inclusive o GELEDÉS, compuseram a Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras(AMNB). O objetivo inicial da AMNB era organizar as reivindicações das mulheres negras brasileiras durante a realização da III Conferência Mundial contra o Racismo, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, ocorrida em Durban, na África do Sul, em 2001. Posteriormente, a entidade ampliou seus objetivos, dedicando-se a reivindicação de políticas públicas de proteção e promoção dos direitos das mulheres negras no país, bem como a luta contra o racismo, o machismo e a homofobia.

suely

Suely Caneiro, do GELEDÉS, no I Encontro Nacional das Blogueiras Feministas.

As entidades feministas negras são muitas e estão espalhadas por todo o Brasil. Integradas ao movimento anti-racista e ao movimento feminista, essas associações revelam o quanto é essencial compreender as matizes da discriminação e a amplitude da diversidade para que a luta pela igualdade aconteça de forma plena e verdadeira.

* “Enegrecer o feminismo” é um importante artigo da intelectual negra Suely Carneiro, disponível 

 


Bárbara Araújo

professora de história, feminista, anticapitalista, capoeirista, flamenguista e poeta sazonal.

+ sobre o tema

Porque ninguém fez nada pela doutora Valéria? Por Adriana Cecilio Marco dos Santos

Juizado Especial de Duque de Caxias, Rio de Janeiro,...

Marina Silva, uma fundamentalista! por Cidinha da Silva

Tão triste testemunhar a uma mulher admirável como Marina...

Autora de ‘Um Defeito de Cor’, Ana Maria Gonçalves fala de adaptação da obra para TV

A autora esteve no II Seminário Internacional Arte, Palavra...

para lembrar

Estações Feministas

Março tem sido um mês dedicado à luta das...

O que pensam 5 mulheres indígenas que são lideranças em suas comunidades

Relatos sobre maternidade, protagonismo feminino e mudanças climáticas fazem...

Ato cobra mulher negra no STF, e OAB-SP assina carta para pressionar Lula

A OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) de São...

Dreadlocks para cultivar os cabelos crespos – e as raízes africanas

Peteca Dreads. (Foto: Divulgação) Em tempos de escova progressiva, ela...
spot_imgspot_img

Festival Justiça por Marielle e biografia infantil da vereadora vão marcar o 14 de março no Rio de Janeiro

A 5ª edição do “Festival Justiça por Marielle e Anderson” acontece nesta sexta-feira (14) na Praça da Pira Olímpica, centro do Rio de Janeiro,...

Mês da mulher traz notícias de violência e desigualdade

É março, mês da mulher, e as notícias são as piores possíveis. Ainda ontem, a Rede de Observatórios de Segurança informou que, por dia,...

Mulheres negras de março a março

Todo dia 8 de março recebemos muitas mensagens de feliz dia da Mulher. Quando explicamos que essa não é uma data lúdica e sim de luta...
-+=