Equidade de gênero: já passou da hora do mercado sair do campo do discurso

Enviado por / FonteECOA, por Thalita Gelenske*

Em 2017, a Harvard, uma das universidades mais prestigiadas do mundo, iniciou um desafio interessante que propunha identificar preconceitos velados na sociedade. Chamado de “Teste de Associação Implícita”, essa análise é feita com base em diversas respostas associativas, evidenciando os vieses inconscientes que ainda estão muito intrínsecos na nossa individualidade e também na coletividade. Por meio desse estudo, foi constatado que 76% das pessoas associam uma carreira e trabalho profissional como algo masculino, enquanto as mulheres estão conectadas às atividades da família e do lar.

O resultado obtido a partir do estudo resume bem as dificuldades enfrentadas pelas mulheres até hoje para se inserirem no mercado de trabalho. Inúmeros estereótipos sociais são construídos com base no gênero, gerando problemas como violência, assédio moral e sexual, micro agressões cotidianas, desqualificação de performance e salários defasados. Infelizmente essa realidade segue comum dentro do meio corporativo, representando um grande desafios a serem superados para além do mês de março.

Nunca é demais lembrar que a introdução feminina mais massiva no mercado de trabalho foi algo tardio e repentino em todo o mundo, ocorrendo somente em meados dos anos 40. Impulsionadas principalmente pela Segunda Guerra Mundial, quando os homens tinham que ir para as frentes de batalha, as mulheres passaram a assumir os negócios da família e demais posições de trabalho no período.

Desde então, o que se viu foi a crescente atuação feminina no ambiente de trabalho formal e informal, fato este explicado pela combinação de questões econômicas, culturais e sociais, em especial, pela atuação de grupos feministas. No entanto, em paralelo a esse avanço, o que se percebe é que muitas vezes essa participação ainda ocorre por fatores depreciativos, resultando num ambiente ainda muito tóxico à presença das mulheres.

Aqui vale trazer como exemplo a realidade brasileira, que é uma das mais problemáticas em todo o planeta. Segundo o relatório Global Gender Gap Report 2022, do Fórum Econômico Mundial, o Brasil figura na 94º posição em relação à igualdade salarial entre homens e mulheres que exercem funções semelhantes, em um ranking com 146 países. Mais do que isso, um estudo do IBGE publicado em 2018 mostra que homens ganham, em média, 20,5% mais do que as colaboradoras de mesmo cargo.

Esses dados comprovam que a entrada feminina no mercado de trabalho brasileiro não foi acompanhada por uma diminuição das desigualdades profissionais entre os gêneros. Prova disso é que a maior parte dos empregos formais femininos estão concentrados em setores e cargos de menor valorização, resultando numa constante discriminação em relação às atividades profissionais.

Como se tudo isso não bastasse, as trabalhadoras ainda precisam lidar com um fenômeno chamado de “teto de vidro”, que, a partir de barreiras culturais, organizacionais, familiares e individuais, dificulta o acesso das mulheres a posições de liderança, principalmente aos mais altos níveis na hierarquia organizacional. Não à toa, somente 38% dos cargos de liderança corporativa do país são ocupados por uma mulher, de acordo com um estudo realizado pela Grant Thornton.

Já no Brasil, temos apenas 13% de mulheres nos cargos de alta liderança das 500 maiores empresas do país, sendo este índice de 0,4% para mulheres negras. Ou seja, o preconceito e a desigualdade são ainda maiores quando olhamos por uma perspectiva interseccional e mapeamos a sobreposição desses marcadores sociais como raça, orientação sexual, deficiência, etc.

No mundo do empreendedorismo, também observamos desafios. Se levarmos em consideração a participação de mulheres cisgênero (cuja identidade de gênero é correspondente com a designada no nascimento) como proprietárias de um negócio, o índice é de 16,9% de acordo com estudo da Associação Brasileira de Startups. Já o percentual de mulheres trans foi de 0,1%.

É preciso mudar

Diante de todo esse cenário, a equidade de gênero no mercado de trabalho se estabeleceu como um dos debates mais importantes da nossa geração. Cada vez mais, as mulheres vêm buscando seu espaço de igualdade dentro da sociedade, seja por meio de movimentos sociais, de engajamento no ambiente corporativo ou de reivindicação de direitos. No entanto, esse processo não precisa acontecer somente para assegurar direitos. É preciso que haja uma contracultura, uma forma de desconstrução do pensamento vigente para que um novo possa emergir. Criar mecanismos para implementar essa discussão é apenas o primeiro passo.

O debate da equidade de gênero precisa se tornar parte da cultura de todo o mercado de trabalho e ser fomentado pela liderança, pelo RH, pelas áreas de negócio e pelos colaboradores. Para fugir do clichê e realmente se posicionar em favor das mulheres e identidades femininas, as empresas precisam realizar mudanças estruturais significativas, que ajudem a resolver os grandes desafios enfrentados pelas profissionais em suas carreiras. E esses desafios estão atrelados também aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU (Agenda 2030).

É importante ressaltar que a criação de um ambiente de igualdade de gênero é um compromisso a longo prazo. Ao defini-la como prioridade estratégica, será necessário desdobrá-la em metas e objetivos de toda a corporação e vinculá-los aos indicadores de gestão. Portanto, a liderança precisa criar as estruturas institucionais e culturais na organização para que a igualdade de gênero se torne um valor compartilhado por todos e todas. Afinal, não adianta tentarmos apenas gerar mudanças de comportamento no nível individual se a organização não construir bases que servirão para sustentar a visão igualitária de gênero no decorrer dos anos.

Há três anos, o Fórum Econômico Mundial alertou que se a evolução atual fosse mantida, levaríamos 257 anos para alcançar a paridade de gênero no mercado. Esse ritmo de equidade jamais pode ser aceito. As mulheres precisam que as oportunidades e as condições de trabalho sejam equiparadas o mais rápido possível. Afinal, já estamos atrasados no processo.

*Thalita Gelenske é fundadora da Blend Edu. Possui 11 anos de experiência na área de gestão da diversidade e cultura organizacional.

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