Escalada homicida

FONTEPor FLÁVIA OLIVEIRA, do O Globo
Flávia Oliveira (Foto: Marta Azevedo)

Durou pouco, quase nada, o armistício na segurança pública do Rio de Janeiro em prol do enfrentamento à pandemia de Covid-19. Após a trégua extraoficial observada nas duas primeiras semanas de isolamento social, as mortes decorrentes da atuação policial retomaram a trajetória explosiva iniciada em 2018, com a intervenção federal liderada pelo general Braga Netto, hoje chefe da Casa Civil do Planalto, e intensificada no ano passado, primeiro de Wilson Witzel à frente do Palácio Guanabara. Levantamento do Observatório da Segurança RJ, projeto do CESeC, mostra que, de 15 de março (início das medidas de distanciamento) a 19 de maio, a polícia fluminense matou 69 pessoas, contra 72 no mesmo período de 2019. Se no primeiro mês da quarentena a letalidade policial caiu 82%, em abril e maio, o número de casos apavora.

Em abril, houve 30 homicídios em operações policiais, 11 a mais que um ano antes. Este mês, em 19 dias, a polícia matou 35, contra 30 em maio inteiro de 2019. A brutalidade das polícias Militar e Civil no Rio é crescente e nem a crise humanitária instaurada pelo coronavírus foi capaz de detê-la. Na segunda metade de março, o Observatório da Segurança contabilizou 26 operações na Região Metropolitana do Rio; em abril, 91; em maio, a dez dias do fim do mês, 82. Estão na conta as incursões que deram na chacina de 13 pessoas no Complexo do Alemão, na sexta-feira, 15; no assassinato de Iago César dos Reis Gonzaga, de 21 anos, segundo familiares, torturado e morto na Favela de Acari; na invasão de uma casa de família no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, que tirou a vida do menino João Pedro Matos Pinto, aos 14 anos. Ficou de fora a morte de João Vitor da Rocha, 18, alvejado numa operação na Cidade de Deus, anteontem à noite, horário incomum para incursões da Polícia Militar, realizadas normalmente nas primeiras horas da manhã.

“As operações e as mortes decorrentes de intervenção policial estão se intensificando. Os escândalos políticos e a pandemia estão desviando a atenção da sociedade para essa escalada de violência. Isso é grave”, diz Pablo Nunes, coordenador da Rede Observatórios de Segurança. Em 2018, incluindo os dez meses de intervenção federal, as forças de segurança mataram 1.534 pessoas; em 2019, foram 1.814 homicídios, recorde da série histórica iniciada em 1991. Em abril e maio deste ano, o número de vítimas fatais saltou 57% e 16%, respectivamente.

Neilton Pinto, pai do estudante João Pedro, partiu corações quando declarou que o assassinato do filho matou também toda a família. Tratou do trauma e do luto nunca contabilizado nas estatísticas oficiais. Um estudo em andamento no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) tenta estimar as vítimas que sobrevivem à violência homicida no país. Somente em 2017, o assassinato de adolescentes negros de 12 a 18 anos, caso do menino de São Gonçalo, deixou 23 mil mortos em vida.

Tanto no Alemão quanto na Cidade de Deus, a escalada dos confrontos tem atravessado as ações de auxílio a famílias em vulnerabilidade, em razão da crise sanitária e econômica decorrente da pandemia. É a crueldade adicional da violência galopante. Na comunidade da Zona Norte, tanto a distribuição de cestas básicas quanto o recebimento de doações pelo Gabinete de Crise do Alemão foram interrompidos, prejudicando duas centenas de lares. Na Cidade de Deus, a entrada do blindado da polícia, seguida de tiroteio, interrompeu a entrega das cinco últimas cestas de alimentos do dia pelos voluntários da Frente CDD. Ontem também não teve expediente e 200 kits deixaram de ser entregues.

“Essa escalada é absurda e inoportuna. Precisa parar. A gente não pede que as ações da polícia terminem, mas que sejam feitas com inteligência, articulação e transparência”, defende a deputada estadual Mônica Francisco, vice-presidente da Comissão de Combate às Discriminações da Alerj, que convocou reunião de emergência para cobrar providências ao governador Witzel na tarde de quarta, com participação de representantes da Anistia Internacional Brasil e da Frente CDD.

O grupo ouviu de Witzel, governador eleito com a promessa de aplicar a lei do abate, que o poder do chefe do Executivo sobre as polícias é simbólico: “Para fins de homenagens, cerimônias, o chefe do Executivo é a maior autoridade. Mas isso é simbólico, porque o governador de um estado não dá a última palavra em operação nem pode fazê-lo”, declarou na audiência gravada.

A Defensoria Pública cobrou do Ministério Público investigação rigorosa da chacina no Alemão. A deputada estadual Renata Souza denunciou o assassinato de João Pedro às Nações Unidas e à Organização dos Estados Americanos. O aumento da violência policial no Estado do Rio ocorre num momento de fragilidade política do titular do Guanabara, em razão do rompimento com o grupo político do presidente Jair Bolsonaro. Witzel aboliu a Secretaria de Segurança Pública, aumentou o status do chefe de Polícia Civil e do comandante da PM e ficou sem escudo na relação com as duas áreas. Em pouco menos de um ano e meio de governo, despencaram as operações conjuntas, colateral indesejável segundo os especialistas na área. Em plena crise sanitária, a mais grave no planeta em um século, o Rio perde seus filhos para doença e para quem deveria protegê-los. É o fim.

 

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