‘Escola deve ensinar sexo saudável e não abstinência’, diz pesquisadora

Uma pesquisa inédita obtida por Universa, feita pelo Datafolha e coordenada pela Associação Mulheres de Paz com professores do ensino fundamental público de São Paulo, mostra que 3 em cada 4 desses docentes já presenciaram atos ou falas discriminatórias contra estudantes. No ranking desses preconceitos, 25% dizem presenciar frequentemente casos de racismo, 23% são testemunhas constantes de gordofobia e 19% presenciam a homofobia diariamente dentro das escolas.

O documento mostra também violência contra professores: 50% desses profissionais disseram na pesquisa que foram vítimas de algum tipo de discriminação — entre as pessoas negras e pardas, esse índice é de 60% e, entre brancos, de 43%.

A desinformação também está presente no meio e é apontada como um dos fatores para o preconceito: o estudo revelou que o sexismo — atitude discriminatória que define quais usos e costumes devem ser respeitados por cada sexo — e a transfobia — discriminação contra a pessoa trans, ou seja, que se identifica com gênero diferente daquele que nasceu — são os termos sobre os quais professores têm menos informação. No total, foram realizadas 285 entrevistas com profissionais da rede pública paulista, entre julho e agosto desse ano.

Com o retorno às aulas presenciais após mais de um ano de escolas fechadas para conter o avanço do coronavírus, a expectativa é que professores se desdobrem, junto aos responsáveis, para estreitar relações de confiança com os alunos e, assim, reduzir os índices de violência. A avaliação é da jornalista Vera Vieira, doutora em Comunicação e Feminismo pela USP (Universidade de São Paulo) e diretora executiva da associação.

“O fechamento de escolas contribuiu muito para o aumento da violência contra a criança assim como a quarentena aumentou a violência contra as mulheres também. Além de ficarem isoladas com o inimigo, as crianças se privaram dessa rede de relações. Acho que podemos contar pelo menos 5 anos de atraso na escolarização e também na socialização dessas crianças e adolescentes e os professores vão ter que se desdobrar muito tanto na parte teórica como na da intimidade com esses alunos”, afirma Vera.

Em conversa com Universa por telefone enquanto voltava de Poços de Caldas (MG), onde foi dar uma palestra sobre violência de gênero, Vera aponta soluções para tornar o ambiente escolar mais seguro e critica projetos conservadores como o “Escolhi esperar”, que incentiva a jovem a adiar o início do relacionamento sexual a fim de evitar a gravidez.

UNIVERSA: Quais as suas impressões sobre a pesquisa?

VERA VIEIRA: Ela mostrou dados fundamentais como a questão da evasão de estudantes e de docentes das escolas em função da discriminação, evidenciando que é um espaço que reforça os estereótipos discriminatórios. Mas aponta também que é de extrema importância se trabalhar no sentido de desconstruir essa maneira equivocada de ensinar o ser menino e o ser menina e ensinar que as pessoas são diferentes tanto em termos de raça como orientação sexual e identidade de gênero.

O estudo também mostra que os professores pouco sabem sobre transfobia e sexismo. Como mudar isso?

Trazendo informações sobre o significado desses termos, porque isso que vai levar professoras e professores a atuar de maneira mais qualificada no sentido de enfrentar as diversas discriminações no ambiente escolar.

Enquanto a pesquisa mostrou que um dos termos que os docentes menos conhecem é o sexismo, eles respondem que não fazem discriminação por gênero nas atividades e não reconhecem que há aquele viés inconsciente de chamar o menino para fazer exercício de matemática e a menina para ler redação, por exemplo. Somos fruto de uma sociedade sexista, homofóbica, racista, então carregamos todos esses vieses sem perceber.

Qual a diferença entre educação sexual e ideologia de gênero?

A ideologia de gênero é uma expressão que infelizmente foi deturpada e carrega um estereótipo que começou com a Igreja Católica, de que vamos ensinar as crianças a fazer sexo ou mudar de sexo desde pequenos. O estudo de gênero significa mostrar que relações de gênero são uma construção social, reforçadas pela cultura e que vêm sendo mantidas historicamente há milênios.

Para as crianças, é importante entender que essa maneira equivocada com que se aprende as características da feminilidade e masculinidade pode ser modificada. Por outro lado, a educação sexual vai fazer meninas e meninos se informarem sobre o corpo que têm e a respeitar o corpo do outro, além de levar a criança a entender aspectos de intimidade e de autoproteção. É fundamental ainda para evitar a gravidez precoce e as ISTs (Infecções Sexualmente Transmissíveis).

Projetos como o “Escolhi esperar”, que sugere a abstinência sexual e é incentivado pela ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, funcionam para evitar a gravidez precoce e as ISTs?

Não. É um absurdo você ver que as pessoas deturpam o entendimento. Acho completamente fora de propósito essa proposta. E não dá nem para citar essa ministra, que só tem ideias totalmente contrárias à sexualidade saudável e à importância desse ensino.

Recentemente o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou inconstitucionais dispositivos de lei do Amazonas que tornaram obrigatória a presença de ao menos um exemplar da Bíblia nas escolas e bibliotecas. Falar em religião nas escolas funciona para combater violência de gênero?

De jeito nenhum. É algo que só vai retroceder. Já vivemos momentos de retrocesso de políticas públicas de igualdade e trazer a Bíblia e a religião só vai levar para uma visão e um comportamento muito mais conservador, longe daquilo que a gente apregoa, que é ensino das relações de gênero, da sexualidade de maneira saudável. Ainda bem que foi considerada inconstitucional. Acho que todas as religiões devem ficar de fora das escolas ou pode-se falar um pouco de cada uma, porque trata-se da nossa história. Isso seria positivo.

Um levantamento de Universa apontou que, em 2019, houve pelo menos um caso de estupro dentro de uma escola em São Paulo. Como melhorar a segurança dentro desses espaços?

A informação é um empoderamento nesse sentido. A partir do momento em que as pessoas têm informação sobre esses temas, mais elas se protegem. Não pode ser um assunto tabu, que se joga para debaixo do tapete. Por que a gente tem tanto medo de falar sobre isso? Minha filha já fala para minha neta, de 5 anos, onde se pode tocar, ensina a procurar pessoas de confiança caso se sentir desconfortável. São ferramentas importantíssimas para diminuir essa estatística, inclusive de estupro dentro de escola.

O Brasil lidera ranking de violência contra professores. Como os pais e o poder público ajudam a cessar isso?

Educar no sentido do respeito a qualquer pessoa, não só do sexo oposto. Esse seria um caminho.

Embora a gente venha discutindo mais sobre machismo, racismo e violência de gênero ao longo dos anos, os casos vêm aumentando. Onde estamos falhando?

Eu acho que os casos estão aumentando pela maior conscientização e denúncia de violência. Mas estamos falhando realmente no processo de desconstrução dessa maneira equivocada de se ver o feminino e o masculino. Se pegar frases de grandes filósofos como Platão e Aristóteles, vamos ver que eles já fomentavam a superioridade masculina e a inferioridade feminina. Não vai ser logo que vamos conseguir avançar, mas claro que políticas públicas de informação, prevenção e acolhimento à mulher que está em situação de violência vão ajudar muito. Não podemos esquecer que o que leva ao feminicídio é aquela situação em que o cara diz que a saia da mulher está muito curta. Há todo um processo de violência psicológica e patrimonial que ela desconhece, e que pode ser pior que a violência física.

A escola é uma das primeiras portas de entrada das denúncias de violência. Mas ficamos praticamente dois anos sem esses espaços abertos por causa do isolamento para conter o avanço do coronavírus. Dá para prever os impactos da pandemia no combate à violência de gênero dentro desses lugares?

O fechamento de escolas contribuiu muito para o aumento da violência contra a criança assim como a quarentena aumentou a violência contra as mulheres também. Porque, além de ficarem isoladas com o inimigo, elas se privaram dessa rede de relações. A criança tinha uma professora ou um professor como uma pessoa com quem se identificava e confiava em levar esse tema tão sofrido. Mas ainda é impossível prever os impactos disso, como é impossível prever as sequelas da doença.

Acho que podemos contar pelo menos 5 anos de atraso na escolarização e também na socialização dessas crianças e adolescentes, e os professores vão ter que se desdobrar muito tanto na parte teórica como na da intimidade com esses alunos, na relação de carinho com essas crianças e adolescentes.

Ficará tudo nas costas do professor para resolver esses problemas?

Acho que o corpo docente precisa de mais instrumentos, de mais formação e que isso não inclua seu horário fora de trabalho para não sobrecarregá-lo ainda mais. É fundamental investir na figura da professora e do professor e dividir o trabalho com os pais para que não fique essa carga tão pesada nas costas do docente e da docente.

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