Escrita de Mulheres Negras em quarentena: autocuidado e sobre(vivência)

Enviado por / FonteIMS, por Elizandra Souza

Reconhecemos a existência de um vasto campo literário produzido por mulheres negras escritoras, que na maioria das vezes, não conseguem se perceber nesse espaço por conta de toda a invisibilidade, machismo e racismo que temos dentro e fora da categoria. E no campo virtual, isso não seria diferente. Neste ensaio, vamos refletir sobre a produção de 40 autoras negras brasileiras de diversas regiões do país, a partir de uma convocação feita pelo instagram Literatura Negra Feminina, idealizado pelo Coletivo Mjiba em maio de 2020, para que as seguidoras enviassem seus poemas sobre autocuidado e sobre(vivência), neste período de pandemia no qual estamos em isolamento social para combater a disseminação da Covid-19. Coincidentemente recebemos 40 textos, que estão sendo publicados um por dia, a maioria inéditos e produzidos para participar dessa ação.

Entendemos como autocuidado, a busca por cuidar de si mesma, contemplando todas as necessidades que o corpo e a mente exigem do indivíduo, para se manter com boa saúde física e metal e adotar medidas de prevenção a doenças e evitar situações de risco. Já a sobre(vivência), para nós, é um conjunto de práticas emergenciais que, compreendidas, treinadas e aplicadas em situações extremas, permitem ao indivíduo prolongar a sua vida e manter-se fisicamente integro, permitindo-lhe o resgate ou que encontre uma saída para os problemas.

Pretextos de Mulheres Negras. Ilustração de Renata Felinto

Essa ação virtual tem como inspiração a Antologia Poética Pretextos de Mulheres Negras, publicada em 2013, organizada pelo Coletivo Mjiba, que registrou a poesia de vinte mulheres negras da Cidade de São Paulo e as escritas das convidadas Queen Nzinga Maxwell (Costa Rica) e de Tina Mucavele (Moçambique), com a intenção de religar os vínculos ancestrais e também escrever a melodia dos nossos próprios ritmos. Pretextos de Mulheres Negras apresenta em cada autora, suas subjetividades, auto representações, seja nos textos, nas imagens e nos perfis biográficos como forma de resistência, memória, pertencimento, ludicidade, corporeidade, musicalidade, religiosidade e outros valores presentes nas africanidades e na diáspora. A escritora Conceição Evaristo no artigo “Gênero e Etnia: uma escre(vivência) de dupla face” enfatiza a importância das escritoras negras inscreverem os seus corpos literários, pois a auto representação se faz necessária para registrar e também construir identidades negras dentro da poesia. Nele, a autora descreve sobre o seu processo de escrita: “gosto de escrever, na maioria das vezes dói, mas depois do texto escrito é provável apaziguar um pouco a dor, eu digo um pouco… Gosto de dizer ainda que a escrita é pra mim o movimento de dança-canto que o meu corpo não executa; é a senha pela qual eu acesso o mundo”.

No prefácio de Pretextos de Mulheres Negras temos a seguinte reflexão:

Somos a continuidade de mulheres negras que nunca conheceram o que era a escrita e também escritoras negras como Maria Firmina, Carolina Maria de Jesus, Maria Tereza, entre outras que não estão mais entre nós, mas que nos presentearam com suas flores e espalharam suas sementes que germinaram bons frutos, nos quais colhemos e nos alimentamos nos dias de hoje. Mas como toda plantação, precisamos constantemente replantar e espalhar novas sementes.

Coletivo Mjiba

Teve início a partir 2001, com o fanzine Mjiba, iniciativa de Elizandra Souza, que posteriormente transformou-se em uma ação coletiva com a criação do festival cultural “Mjiba em ação” no CEU Três Lagos, na região do Grajaú, periferia da zona sul de São Paulo, em 2004, unindo alguns motivos, o primeiro deles foi a influência da Cultura Hip Hop que na época convocava seus adeptos para fazer algo pela comunidade. Apesar de propor mudanças efetivas na sociedade, as mulheres negras não eram tão valorizadas como protagonistas dentro dessa cultura e surgiu a ideia de comemorar a data 25 de julho – Dia da Mulher Afro Latina e Caribenha, refletir sobre as temáticas de gênero e raça/etnia e também fortalecer esse protagonismo de jovens mulheres negras nas diversas linguagens artísticas. As edições do Mjiba em Ação aconteceram em 2004 e 2005, retomando somente em 2012, quando fomos contempladas pelo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais – VAI, da Secretaria Municipal de Cultura da Cidade de São Paulo. A partir da aprovação neste edital, o coletivo passou a se dedicar também a fomentar a escrita da mulher negra sobre si mesma, disponibilizando os textos através das publicações dos livros: Águas da cabaça, Elizandra Souza (2012); Antologia Poética Pretextos de Mulheres Negras (2013); Terra Fértil, Jenyffer Nascimento (2014). Recentemente, de forma autônoma e independente foi publicado o primeiro livro de contos Filha do fogo – 12 contos de amor e cura, Elizandra Souza (2020).

Paciência, de Ana Beatriz

Dando continuidade ao que o Coletivo Mjiba chamou de replantar e espalhar novas sementes, a ação virtual teve a estreia com a poesia “Paciência”, de Ana Beatriz, mulher preta periférica, 21 anos, estudante de Psicologia e moradora da região do Grajaú, local onde o Coletivo Mjiba teve suas ações territoriais e que é importante para as descobertas poéticas da autora que escreve para que não se sufoque com a imensidão do seu próprio ser.

A autora reflete sobre a ansiedade que é estar em isolamento social e a tentativa de se auto animar acreditando que novos dias estão a caminho e por isso o título pedindo paciência a si mesma pelas emoções conflituosas que este período tem provocado.

Trecho do poema:

“Estava lembrando de antes,
e me deu saudade do tempo
que eu não era torturada pelo medo.
A vida pede calma,
mas às vezes a ansiedade consome a minha alma.”
(…)
Mas hoje, não vou disfarçar os meus medos.
Não vou fingir que estou bem,
nem ficar forçando um sorriso falso.”

► Ler o poema inteiro

A mulher emergindo da lama, de Anajara Tavares

A segunda autora Anajara Tavares, nascida em Salvador, na Bahia, é graduada em fonoaudiologia pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Descreve-se como uma mulher preta em diáspora, mãe de Flor de Lis e amante da arte. Uma poeta aflorando a cada linha. Nos presenteou com o poema “A mulher emergindo da lama” no qual descreve seu processo de reclusão dentro de um universo entre a sanidade, rotina e renascimento:

Trecho do poema:

“A sanidade e a palavra seguem, teimando em escorrerem ligeiras em qualquer canto de boca muda pelo mundo
A palavra é uma reza, um pedido de socorro, gritando, denunciando o que em vão tentamos calar no fundo.
Escute-se! “

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Oração ao corpo, de Aline Maxiline

A terceira autora Aline Maxiline, paulistana, se descreve como mãe solo preta e feminista. Amante da ciência, educação e das letras. Seu poema é uma oração ao corpo, nestes tempos temos refletido sobre cuidar das nossas casas e o corpo é a nossa primeira morada como ser humano. Neste poema-oração, ela pede perdão e promete nunca mais violentar o próprio corpo, na tentativa de se encaixar em um padrão. Reflexão essa que atinge todas as mulheres, sobretudo as mulheres negras que não são vistas como detentoras de beleza.

Trecho do poema:

“Prometo corpo meu
Que vou te acolher
Te olhar com amor
Te enaltecer
Corpo que carrega minha história, minhas lutas
Tu és perfeito,
Não vou mais me importar com olhares julgadores
Vou te fazer jardim, plantar mil flores “

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Neste demonstrativo dos três primeiros poemas publicados podemos refletir sobre a complexidade de sermos mulheres negras escritoras e que estamos lutando para que possamos manter a nossa sanidade e paciência para enfrentarmos essa situação de pandemia com poesias que refletem nosso tempo, nossa rotina e sobretudo como nos mantermos vivas e com a saúde mental saudável.

A autora Alessandra Reis, nascida em São Paulo, mas atualmente mora em Belo Horizonte, refletiu sobre as lives e como tem sido acalentador termos este recurso para sobreviver aos dias.

Já a autora Ana Fátima, também soteropolitana, nos trouxe a realidade de que os “pandemônios provocam/ Permanentemente/ Pânico/ Para/ População Preta/ Pandemias?/ Pobreza, poluição, preconceitos/ Protestos, pêsames persistem../ Pretitude/ Proibe/ Paralisia/ Fogo nos racistas! “. Neste poema a reflexão que, antes e durante a pandemia, temos o estado brasileiro racista e uma necropolítica que dissemina a morte de jovens negros. A produção literária das mulheres negras não poderia deixar passar sem problematizar essa situação que continua a nos afligir mesmo durante o período de isolamento social.

A ignorância mata mais que o vírus!, de Cláudia Paixão

Também temos entre as autoras, Cláudia Paixão, enfermeira, escritora e psicanalista, atuando na linha de frente do combate ao Covid-19 na região do Vale do Paraíba. Seu poema intitulado “A ignorância mata mais que o vírus!”

“A ignorância mata mais que o vírus!
Mata, porque se insiste em ser desleal…
manobrando as recomendações
que resguardariam a vida…a partir da própria!
Mata mais, porque a anulação de sua responsabilidade vai sobrecarregar” algum outro!

► Ler o poema inteiro


As autoras participantes na ação virtual Poesias de autocuidado e sobre(vivência) no perfil de Instagram Literatura Negra Feminina possuem as mesmas características literárias encontradas na Antologia Pretextos de Mulheres Negras refletindo sobre subjetividades, auto representações, resistência, memória, pertencimento, ludicidade, corporeidade, musicalidade, religiosidade e outros valores presentes nas africanidades e na diáspora, o que diferencia é o contexto de isolamento social e pandemia.


Elizandra Souza

Escritora, poeta, editora, jornalista e ativista cultural, é integrante do Sarau das Pretas. Escreveu Filha do fogo – 12 contos de amor e cura (2020), Águas da cabaça (2012) e Punga (2007). Foi editora da Agenda Cultural da Periferia na Ação Educativa e atualmente é Educadora de Comunicação na Associação Bloco do Beco.

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