Eu quero amor, não “Sexo e as Negas”

Sexo e as Negas foi um dos assuntos mais polêmicos do mês. A série, que começou com tentativas de boicote, repúdios e inúmeras manifestações em relação à sua abordagem e temática, teria sido a tentativa do diretor Miguel Falabella de fazer algo como um Sex and the City da periferia, mas acabou sendo: minhas lágrimas após assistir a um breve trecho do primeiro episódio.

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Como já previsto, a série reforça estereótipos, traz frases humilhantes e racistas, mas, principalmente, diz em várias cenas que as negras servem só para o sexo. Não existe problema nenhum em transar, fazer amor, ter relações sexuais, ou seja lá qual terminologia você usa. A questão nessa frase é o . A problemática não gira em torno da liberdade sexual, mas sim do peso histórico que a mulher negra carrega: no imaginário popular, é associada à sensualidade, ao sexo e ao prazer, de maneira objetificada. Como naquele preceito machista de que existissem mulheres para namorar e para casar, mulheres para amar, e mulheres para transar. Geralmente, além de machista, esse preceito também é racista: as negras são mulheres para transar. Fetiche de homens que jamais as assumiriam socialmente em um relacionamento.

Eu acredito que nós, mulheres negras, estamos cansadas de não poder viver o amor. Ao menos eu estou.

Muitas pessoas falam que queriam ter minha determinação pra lidar com questões polêmicas e difíceis, como a racial. Mas, no fundo, eu sou uma garota daquelas bem românticas que já viveu paixões, que tentou, se iludiu, mas, principalmente, que sofreu racismo também em relacionamentos afetivos e isso dói muito. Já me senti péssima por ser quem eu sou e por saber que muitas das vezes o fato de ser negra implicou em ser preterida. Não é uma paranóia, são inúmeras meninas e mulheres negras passando pela mesma situação. E o fato é que se você começar a olhar no seu dia a dia e perguntar: Quantas negras namorando ou casadas eu conheço? Quantos famosos namoram negras? Quantos jogadores de futebol namoram negras? Se o exercício se estender às revistas direcionadas a noivas pensando em quantas negras estão sendo representadas, é menor ainda. Até mesmo em novelas, de maneira geral, a mulher negra costuma ser solteira, separada, viúva, em outras palavras: a solitária.

Entendam que não quero dizer que uma mulher precise de um relacionamento para ser feliz. Não é isso. O que quero dizer apenas é que uma mulher negra é uma pessoa completa, não um objeto sexual. Ser tratada como escrava é, consequentemente, ser vista como alguém que está a serviço do senhor. Um senhor que, além de satisfazer seus desejos violentando as escravas, só permitia relações entre negros quando era de seu interesse comercial, para adquirir mais escravos e assim mais mão de obra.

Todo esse contexto complexo criado pelo sistema racista faz com que as relações amorosas (sejam hetero ou homossexuais) acabem sendo fortemente influenciadas pelo peso histórico que carregamos.

Não é à toa que quando li o texto da Bell Hooks sobre amor e a mulher negra, Vivendo de Amor, tive aquela sensação que Hooks falava pra mim, que eu me encaixava tão bem naquelas palavras. Sendo assim, só cabia entender e chorar. Não se trata de idealizar o amor romântico, mas quero amar e ser amada. Quero passear de mãos dadas pelos lugares sem que a pessoa ao meu lado sinta vergonha porque sou negra, quero que alguém que me abrace enquanto assistimos a um filme; quero os pequenos prazeres do amor: conhecer pelo cheiro, conversar pelo olhar, desarticular pelo toque. Quero tudo que amar pode me propiciar, mas quero principalmente ser amada e respeitada também.

“É a falta de amor que tem criado tantas dificuldades em nossas vidas, na garantia da nossa sobrevivência. Quando nos amamos, desejamos viver plenamente. Mas quando as pessoas falam sobre a vida das mulheres negras, raramente se preocupam em garantir mudanças na sociedade que nos permitam viver plenamente. Geralmente enfatizam nossa capacidade de ‘sobreviver’ apesar das circunstâncias difíceis, ou como poderemos sobreviver no futuro. Quando nos amamos, sabemos que é preciso ir além da sobrevivência. É preciso criar condições para viver plenamente. E para viver plenamente as mulheres negras não podem mais negar sua necessidade de conhecer o amor.”  Bell Hooks

Por isso, essa construção social do amor que não se desvinculou do racismo é tão cruel. Eu sou a Globeleza, a “Mulata Exportação”, a Passista do Carnaval, a eterna e provocadora Rita Baiana do imaginário popular, sou a moça que tem a cor do pecado. Não sou apenas uma mulher que existe além de sua sexualidade.

É por conta de tudo isso que algumas situações da série não são tão distantes pra mim. Não assisti a um trecho: eu revivi histórias. Ver a mulher negra sendo objetificada/hiper sexualizada também na ficção, de forma tão gratuita, me fez chorar. Eu preciso ver mulheres negras em outros papéis, livres de verdade!

Muito já foi falado sobre a solidão da mulher negra. Para quem vive isso na pele, doeu muito a reafirmação que Sexo e as Negas trouxe. É esse pensamento que gera dados como o do IBGE, que afirma que nós estamos no que chamam de “celibato definitivo“.

A minha dúvida então é: por que reproduzir o que nos causa dor e reforça preconceitos em um programa de tv que supostamente deveria nos representar?

As negras podem e devem ter liberdade sexual. Como todos os seres humanos, são seres naturalmente sexuais. Mas limitá-las a pessoas que só pensam em homens e sexo é desrespeitoso. Reafirmam a forte conotação sexual que já nos dão. Infelizmente, já prevejo novas formas de assédio nas ruas fazendo alusão à série.

Ao assistir ao trecho, eu chorei. Acredito que no começo foi de raiva pelas estereótipos reforçados. E depois pelo cansaço: queria realmente viver num mundo em que eu não precisasse ficar gritando por respeito todos os dias.

Sexo e as Negas não é só uma série. É um programa na maior rede de televisão do país que está dizendo que eu sou para sexo, como o senhor fez com a escrava, como alguns garotos que me envolvi fizeram comigo, como meninas negras como eu já escutaram milhares de vezes das mais diversas formas, abrindo a ferida da nossa solidão que tentamos curar todos os dias.

O mundo é um moinho muito grande que destrói meus sonhos, mesmo os mais “simples”, como amar e ser amada

Desculpa, mas eu não consegui não chorar.

 

Fonte: Confeitaria mag

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