Existe feminismo indígena? Seis mulheres dizem pelo que lutam

Indígenas debatem questões como violência, igualdade de direitos e hipersexualização. Elas afirmam que a Lei Maria da Penha não contempla suas especificidades

por Isabela Aleixo* no O Globo

As mulheres estão na linha de frente da luta do movimento indígena e têm ganhado visibilidade e espaço como lideranças. Em 2018, 30 anos após a promulgação da Constituição Federal (1988), a primeira indígena foi eleita para representar o estado de Roraima no Congresso Nacional, a deputada Joênia Wapichana (Rede), e a líder indígena Sonia Guajajara concorreu como vice-presidente na chapa do candidato Guilherme Boulos (PSOL). Mas, apesar disso, é possível falar em um feminismo indígena? Quais são as suas reivindicações? Perguntamos a mulheres de diversas etnias quais são as pautas prioritárias na luta por direitos e igualdade.

Potyra Tê Tupinambá

Potyra Tê Tupinambá é formada em direito e atua em defesa dos direitos dos povos e das mulheres indígenas Foto: Acervo pessoal

“As feministas se unem e se apoiam, mas o indígena tem um olhar diferenciado que, talvez, só convivendo ou sendo indígena para entender. Ele não é sozinho, tem muitos atrás dele. Então, esse pertencimento e essa força fazem com que eu não me identifique com o feminismo.

Muitas vezes, as mulheres nas comunidades indígenas têm voz. As nossas lutas são tantas e são grandes. Primeiro, para existir, que é resistência. Depois, a gente briga por educação, saúde e demarcação do território. São tantas as lutas que a questão do direito da mulher fica para último plano. Se dentro da comunidade não tiver uma mulher com afinidade com o tema, ele vai sendo esquecido. Acho que a pauta principal é pensar espaços para a discussão das questões ligadas à mulher.

Uma segunda pauta seria a Lei Maria da Penha. Ela não nos atende. Sofremos tanto, lutamos contra esse sistema e vamos entregar um parente nosso a ele? A polícia não é nossa amiga, nós temos medo de quem incrimina as nossas lideranças. Então tentamos, enquanto movimento de mulheres, criar mecanismos internos dentro das comunidades para buscar soluções sem precisar acessar o sistema que nos oprime.

Quando há uma situação de violência na comunidade, a gente grita, tenta acolher aquela mulher, bota o agressor para correr e, depois, fica de sentinela na porta da casa. É claro que há situações que precisam ser levadas à delegacia. Eu já levei mulheres à delegacia e, mesmo com nível superior e a carteira da OAB na mão, não me senti à vontade dentro da delegacia da mulher de Ilhéus, onde fui atendida por um homem. Imagina uma parente minha, que já está fragilizada, já sofre preconceito por ser indígena, chegar a uma delegacia dessas? É importante desenvolver grupos de apoio para as mulheres em situação de violência. E, além disso, fortalecê-las para que impulsionem o movimento de enfrentamento à violência nas aldeias.

São muitos os direitos negados às indígenas. Temos nossa parteira tradicional e, quando o parto não pode ser realizado dentro da comunidade, ela não pode acompanhar o parto no hospital. Muitas mulheres sofrem violência obstétrica, então tentamos fortalecê-las para que não aceitem este tipo de situação.

Eu acho que não existe um feminismo só. A mulher que mora na cidade está em um contexto diferente do nosso, que vivemos na aldeia. Assim como o nosso contexto é diferente daquele das indígenas que vivem no contexto urbano. Então, acho que a gente tem que falar de vários feminismos. Cada povo é diferente. Não podemos dizer que indígena é tudo igual.

Eu sou do povo Tupinambá, em que a mulher tem um papel muito importante dentro da nossa sociedade. Somos um povo matriarcal, a nossa maior liderança é uma mulher. Nesse sistema, toda família tem uma matriarca, que é a anciã, e as coisas são resolvidas com aval dessa mulher. O meu povo, Tupinambá de Olivença, tem uma cacique mulher.”

Potyra Tê Tupinambá é advogada e gestora executiva da Ong Thydewá.

Laís dos Santos

Laís dos Santos estuda Ciências Sociais na USP e é da etnia Maxakali Foto: Acervo Pessoal

“Eu não me identifico como feminista indígena. O movimento é de luta das mulheres indígenas. O feminismo não contempla as nossas pautas, dificilmente somos colocadas em debate. Nossa luta pelas mulheres indígenas é bem estabelecida. Acho que teria que ocorrer uma descolonização e ressignificação do feminismo muito grande para atrair os olhos em larga escala para nós.

A nossa principal pauta é a demarcação de terras. Não só das mulheres indígenas, mas do movimento indígena. Se não temos nosso território, não temos nada.

Além disso, tem a questão da violência contra a mulher indígena e de como isso se atrela ao racismo por causa da hipersexualização e do estereótipo. O estupro das indígenas é uma forma de dominação do não indígena, uma forma de deslegitimar, de desestruturar e desequilibrar toda a aldeia. Não é só uma violência física e psicológica, é uma forma de violência racial, que tem um caráter de superioridade do homem branco diante dos povos indígenas.

Em relação à violência doméstica, a gente destaca como a Lei Maria da Penha não elabora um diálogo com as nossas especificidades. É difícil contemplar e dialogar com nossos contextos dentro das aldeias. Hoje, há cartilhas sobre a Lei Maria da Penha traduzidas para a língua materna dos povos porque, além de não contemplar as nossas especificidades, ela não chegava às aldeias porque não havia tradução. E, dentro da aplicação da lei, tem a questão da discussão sobre respeitar a organização social do povo, de respeitar nossa autonomia.

A mortalidade infantil também é uma pauta bem urgente, porque as crianças indígenas são as principais vítimas. Tem também a questão das mulheres indígenas encarceradas. É muito desrespeito sobre quem nós somos e sobre os nossos costumes. As mulheres indígenas encarceradas são invisíveis.

O machismo do não indígena foi imposto e, por vezes, naturalizado dentro das nossas culturas. Então, colocamos a questão do protagonismo da mulher indígena na luta, dentro da aldeia, e fazemos um trabalho de conscientização de que nós não somos inferiores, que somos iguais e temos todos os direitos de estar na linha de frente da luta. Tanto que estamos.”

Laís dos Santos é da etnia Maxakali (MG), estudante de Ciências Sociais na USP.

Cacique Maria Arian Pataxó

Cacique Maria Arian Pataxó da Aldeia Dois Irmãos, em Prado, na Bahia Foto: Acervo Pessoal

“Às vezes, as mulheres pensam que violência é só física, mas vários tipos de violência atingem as indígenas. Psicológica, física e moral. Tem a violência territorial e a educacional. Por ser uma liderança indígena, muitas pessoas que não conhecem os meus direitos querem impedir a minha luta. E pessoas que vêm de fora querem tomar nossos espaços dentro do nosso território.

Eu tenho passado por muitas violências, mas eu enfrento e falo que sei de onde venho. Sou nativa, sou indígena, sou filha de pescador. Nasci dentro desse território e resisto até hoje. Tenho uma comunidade e luto por ela. E luto pela demarcação das terras indígenas também. Isso para mim é muito gratificante: poder lutar pelo direito de um povo tradicional, nativo, indígena.

A grande violência que eu, como mulher indígena, sofro é causada pelo homem branco por território. Nos ameaçam para sairmos das nossas áreas, que estão dentro da demarcação indígena.

Como cacique, a minha responsabilidade é sobre tudo que acontece na minha comunidade: educação, saúde, sustentabilidade e moradia. É para que as pessoas, que precisam de segurança, sejam respeitadas, possam sobreviver, ter o espaço delas, estudar. Terem sua terra demarcada, sua cultura, tradição e crenças garantidos. É por isso que eu luto e não me canso de lutar.”

Maria Arian Pataxó é cacique da Aldeia Dois Irmãos em Prado, na Bahia.

Sonia Guajajara

Sonia Guajajara coordena a APIB Foto: Matheus Alves

“A garantia dos territórios é a principal pauta dos povos indígenas. Nós, mulheres, não estamos desvinculadas desse processo. A defesa da biodiversidade é uma pauta nossa já que as mulheres são as guardiãs dos conhecimentos tradicionais. Quanto à sustentabilidade dos territórios, o que a gente fala como mulher é que, no contato interétnico, a sustentabilidade das famílias foi feita por nós, pois as lideranças masculinas fizeram a frente de contato direto.

Uma outra pauta é a discussão da violência vivida por nós e advinda do processo colonial, que desestruturou as organizações sociais, principalmente as regras internas de organização. A colonização trouxe a violência institucional que atinge principalmente as mulheres.

Esse feminismo do jeito que é colocado não atende às visões das mulheres indígenas. A luta das mulheres indígenas está casada com a luta do movimento indígena. As pautas são interligadas, são lutas que se somam. Nossas conquistas estão relacionadas com nossa maior participação nos processos de debate, de conseguirmos pautar assuntos de nosso interesse e nos posicionarmos sem a necessidade de estarmos numa posição de disputa com os homens.

O maior obstáculo é a negação da identidade aos povos indígenas, todos, homens e mulheres. Isso afeta duplamente a mulher. Essa negação marginaliza a mulher, coloca o homem no topo, mas não é essa a nossa lógica. A nossa organização social é de complementariedade.”

Sonia Guajajara é coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).

Joênia Wapichana

Joênia Wapichana é a primeira indígena eleita para o Congresso Nacional Foto: Luis Macedo/ Câmara dos Deputados

“Eu não acho que a luta das mulheres indígenas é separada da luta indígena. É lado a lado, são as mesmas preocupações. Só que, agora, as mulheres estão sendo protagonistas dos direitos indígenas. Eu vejo atualmente uma maior visibilidade delas.

Essa palavra (feminismo) é um conceito que os brancos falam. Vamos contextualizar: o que é o feminismo? É a atuação da mulher? São espaços que a mulher assume? São responsabilidades? Se for nesse sentido, acho que sim (sou feminista), porque já venho atuando, sendo responsável por uma série de defesas e assumindo responsabilidades. Se isso for feminismo, que dizem que é a atuação da mulher, então sim.

Nos últimos anos, a gente tem visto as mulheres reivindicando cada vez mais, levantando a necessidade de políticas específicas. A Lei Maria da Penha não foi preparada para a indígena, ela foi feita em um contexto urbano. A lei pode auxiliar em situações de violência doméstica, mas não foi pensada para a mulher indígena.

Dentro da comunidade indígena, a gente percebe que há problemas que foram levados por fatores externos. Nas comunidades mais próximas das cidades, o alcoolismo gera violência contra a mulher indígena, por exemplo. E, por outro lado, há questões propriamente relacionadas aos direitos indígenas, como o impacto de invasões. Os conflitos por terras também vitimam as mulheres. Assim, ao pensar em uma proteção, a legislação tem que ter essa visão do geral, do que afeta as indígenas.

É importante eu estar no Congresso Nacional para que, nós mulheres indígenas, vejamos que temos a capacidade de nos representar, de atuar e de mostrar mais uma vez que nós não somos inferiores. O que nos difere é a questão cultural. A minha presença é importante porque temos uma voz que pode fazer diferença em termos de proposições, de fiscalização e de posicionamento nas discussões. É provar que podemos falar de igual para igual e nos colocar por nós mesmos sem mediadores, ampliando a participação social das mulheres. Assim, podemos trabalhar contra os estereótipos sobre as mulheres e os povos indígenas.”

Joênia Wapichana foi a primeira indígena eleita para o Congresso Nacional, em 2018.

Maria Bárbara de Oliveira Silva

Maria Bárbara de Oliveira representa as mulheres Pankararu, de Pernambuco Foto: Acervo Pessoal

“A palavra feminismo era muito estranha para mim. Ela significava ‘mulheres que não gostavam de homens’. Mas, hoje, eu sei que feminismo significa mulheres que lutam pelos mesmos direitos que os homens, pelo direito de participar, de ter voz nas reuniões, direito de salário igual e de lutar por igualdade.

Hoje, sei que a mulher feminista é aquela que se empodera, que não tem medo de ir em busca de seus objetivos. O homem não tem direito sobre as mulheres. Aqui na minha aldeia, muitas mulheres ainda são submissas aos homens, têm medo de se expressar e de lutar por seus direitos. Ainda está sendo muito difícil mostrar para elas que feminismo é lutar por direitos iguais aos do homem e que os dois devem estar sempre caminhando juntos, que nenhum é melhor que o outro. Hoje, eu me sinto uma mulher feminista, porque eu luto pelos meus direitos.

Por mais que algumas mulheres ainda tenham medo, muitas são bem decididas. Não têm medo de enfrentar a vida sozinhas e tomar suas decisões. Elas participam mais da tradição, dos movimentos indígenas, estão nas reuniões junto com lideranças masculinas. Algumas têm esse olhar de que o papel delas é muito importante na comunidade, de que elas devem estar presentes debatendo e ajudando a comunidade junto com as lideranças masculinas.

Aqui na minha aldeia tivemos rodas de conversas com as mulheres e fizemos várias oficinas para incentivá-las a ser independentes e ter sua própria renda. Percebemos que algumas situações de violência doméstica aconteciam porque elas dependiam economicamente de seus companheiros. Então, hoje, muitas mulheres trabalham e fazem seu próprio artesanato, seus bolos, e têm uma renda a mais na família.

Maria Bárbara é liderança de mulheres da etnia Pankararu, em Pernambuco. Ela representa as mulheres da comunidade em reuniões e assembleias dentro e fora da aldeia.

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