Falabella: as mulheres negras já inauguraram um tempo novo!

O tempo nos ensina que mesmo quando certas coisas são superadas, as coisas ultrapassadas permanecem convivendo com a novidade por muito tempo. Às vezes de maneira pacífica, em outras a guerra se instaura, mas umas e outras se suportam, se aturam e, acima de tudo, demonstram tempos diferentes e desequilibrados de amadurecimento de ideias, atitudes e comportamentos em relação a determinado tema. Isso ocorre com o racismo e seu principal alvo no Brasil, as pessoas negras.

Por Cidinha da Silva

Experimentamos pequenas conquistas, de grande valor simbólico, em todos os campos, sempre marcadas por contradições: no futebol, Arouca, antes de Aranha, ambos jogadores do Santos de Pelé, já havia se rebelado de maneira contundente contra o racismo institucional nos campos de futebol. Pelé, de quem a crônica esportiva conta muitas histórias de discriminação racial sangradas na real pele preta, tal qual a de um homem rico que recepcionou um grupo de jogadores importantes em casa, Pelé, entre eles, e que teria mandado esvaziar e lavar a piscina depois que o Rei se banhou por lá.

Quando se trata de assumir e discutir o racismo no futebol Pelé é um zagueirão sem técnica, bronco e violento, daqueles que isolam a bola, dão botinada, como se assim, passando por cima do adversário, fingindo que ele não existe ou é ruim de bola, anulassem o problema. Entretanto, Aranha e Pelé, tão distintos na percepção e no enfrentamento do racismo que os atinge, fazem o mesmo caminho nas escolhas sexuais e afetivas e formam família com mulheres brancas. Afinal, em algum lugar da subjetividade dos homens negros um apito deve alertá-los de que estar de braço dado ao mesmo modelo de mulher escolhido pelos machos tipo alfa dá um up grade na masculinidade subalternizada que os fragiliza.

Conquistas no judiciário, manifestas na pequena presença numérica, mas, simbolicamente amplificada, de mulheres e homens negros no exercício da função de juízes. Nas universidades, o simbolismo se repete com professores negros e há também a mudança da paisagem discente, deflagrada pelas cotas raciais e pelo PROUNI.

Na sociedade civil organizada a atuação das mulheres negras nos 25 anos recentes tem sido timoneira dos principais ganhos obtidos pela população negra no país, no que tange à representação política e a participação em instâncias de poder.

Na arte, o Hip Hop, desde os anos 80, forma sucessivas gerações de jovens negros politizados e aguerridos, com consciência de raça e classe. Setores importantes das periferias brasileiras, notadamente nas duas últimas décadas, produzem cultura orientada por parâmetros próprios, deseuropeizados, enegrecidos, afirmados.

Um conjunto de mulheres e homens negros, cujo trabalho cotidiano, o racismo estrutural continua a invisibilizar e/ou diminuir, atua na mídia eletrônica, forma opinião, apresenta argumentos, performa desconstruindo o racismo, escancarando seu modus operandi. Prova disso é que o autor de uma minissérie criticada antes mesmo de começar, crítica embasada naquilo que título, sinopse, material de divulgação do seriado, comentários da imprensa de celebridades e fofocas, piadinhas racistas derivadas do novo seriado denotam, dá-se ao trabalho de escrever uma nota pública em resposta ao burburinho contrário à peça televisiva deflagrado na internet.

Mas, existe também um mundo negro que demonstra impermeabilidade recalcitrante ao exemplo, ao discurso e às práticas do mundo negro novo, orientador de seu próprio caminho. Um mundo negro apequenado, ainda apegado à sombra da varanda da casa grande, por não compreender que as pradarias verdejam no horizonte e convidam suas pernas livres de grilhões para correr, nadar, voar. Este mundo negro definido pelo atavismo, pela crença de que precisará eternamente da liberdade concedida pelos brancos, por meio de favores e afagos na cabeça do animal de estimação que lambe os pés dos donos, é buscado com fonte de inspiração e legitimação para reinventar a casa grande. E esta, como se sabe, é uma estrutura mental poderosa que, por um lado, garante os privilégios dos donos e, por outro, mantém escravizados e alimentados por migalhas aqueles que, contemporaneamente, validam a ação do escravizador.

O mundo negro novo é fonte de água boa que nem sempre se apresenta à primeira mirada. O mundo negro achatado, por sua vez, é água lodosa que mina do fundo da casa grande, perto da fossa. Não há como não vê-la, não senti-la. A estratégia dos que mandam há cinco séculos para manter o poder é recolher e oferecer essa água podre ao público sedento em goles diários, como se não houvesse outra. Como se fôssemos obrigados a nos contentar com zorras totais, o sexo e as negas porque oferecem emprego sazonal a artistas negros que passam longos períodos sem trabalhar, vendo-se assim, impossibilitados de apurar a técnica e de se firmar no meio artístico. E que a revolta se cale, senão a casa grande retoma o chicote do black face e aí esses negrinhos verão o que é bom para a tosse.

Há de chegar o tempo em que o anúncio de uma programação televisiva que nos agrida será boicotada, apenas. Vamos discuti-la, obstá-la, impedi-la de ser veiculada pelo que ela anuncia e nos desobrigaremos de assisti-la. Nos recusaremos a assisti-la. E chegará o tempo em que tais histórias não mais serão escritas e quando televisionadas, se forem escritas, não haverá telespectadores, e por isso não haverá patrocinadores e aí viraremos a mesa e ganharemos o jogo. Mas não nos enganemos, a casa grande se reconstrói todo dia e pode nos surpreender.

Fonte: Cidinha da Silva

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