As faces da representatividade

Recentemente, me deparei com duas notícias bem interessantes por motivos parecidos, mas que merecem críticas diferentes.

por Stephanie Mendonça

A primeira delas é em relação à atriz Keke Palmer de 21 anos, que será a primeira Cinderela negra da história da Broadway. Eu consigo facilmente associar esse fato à Lupita ganhando o Oscar e, em seguida, sendo eleita a mulher mais linda do mundo. Acredito que uma porta foi aberta. Não que falte talento para Palmer: ela atua, canta e dança muito bem, mas sempre existiu uma barreira racista, que está sendo desfragmentada aos poucos por cada negro que passa a ocupar um papel que antes lhe era negado.

Cinderela é um clássico. Mesmo com seu viés machista, que enfatiza a dependência da figura masculina para modificar a vida e consequentemente o status social da protagonista para melhor, ainda assim, uma mulher negra na Broadway ocupando o papel principal em uma peça é uma conquista importante devido à relevância dessa representatividade. Interpretar a empregada ou aquela dedicada a servir não é uma função nova para atrizes negras, mas, em Cinderela, essa condição se diferencia do que acontece nas telenovelas brasileiras, quando as empregadas “quase da família” vivem dentro do mesmo lar que os patrões, têm poucas falas, aparições e importância para a história — porém sempre estão disponíveis para o copo da água no meio da madrugada que a mocinha pede.

Angela Davis, em sua vista ao Brasil, disse: “Sempre vejo televisão no Brasil pra ver como o país se representa e a TV nunca permitiu que se pensasse que a população é majoritariamente negra”.

Por isso, a segunda notícia que me intrigou: a nova série da Rede Globo, Sexo e as Negas, está sendo assunto na comunidade negra — as negras são protagonistas, mas tudo parece errado, começando pelo nome que já coloca a mulher negra no lugar que o machismo e o racismo juntos criaram: o da objetificação, da hiper sexualização. A nova programação aparentemente é baseada em Sex and the City, série norte americana em que quatro mulheres eram empoderadas, livres e bem sucedidas. Porém, nessa nossa “versão”, as mulheres vão reforçar o estereótipo da mulher negra no Brasil: serão camareira, costureira, operária e cozinheira. Todas continuam a servir.

Não existe nenhum problema com essas profissões, que são digníssimas. O problema é que ainda continuamos participando da programação da televisão com papéis que reforçam o preconceito. Se o Brasil é o país com maior número de negros fora do continente africano, a mídia nacional deveria trazer a nossa presença de maneira diversificada, em diferentes situações e vivências, não só nos papéis que parecem indicar qual é a nossa única função para a sociedade.

Para manter a ordem estabelecida, mesmo que ela seja excludente e cruel, a mídia colabora como pode e não como deveria.

E quando falo da importância da contribuição da mídia, não acredito que seja debatendo sobre o racismo da forma rasa como vem sendo feito em alguns programas, mas sim realmente aumentando a representatividade, com empenho em enxergar vícios sociais por vezes ocultos, mas muito danosos. Como podemos evoluir assim?

O povo negro ainda é o que dá cor para a periferia e para as favelas, mas ele também está em outros lugares. Porém, isso raramente é mostrado. Se estamos à margem da sociedade, sabemos que não é por falta de luta ou mérito, mas por conta de uma sociedade racista que age de forma sistêmica e agressiva, direcionando o negro ao subúrbio e ao subalterno, uma fórmula que está tão enraizada que não parece ser plausível uma inversão de papéis: é isso que Sexo e as Negas reafirma.

Nos meus livros de história, vi que fomos escravizados, mas não vi as nossas conquistas. Ou somos silenciados com o esquecimento ou somos embranquecidos, mas Machado de Assis, maior escritor brasileiro, era negro. Chiquinha Gonzaga, retratada numa minissérie pela Regina Duarte, também era negra — embora não tenha sido representada por uma negra. Machado de Assis também não é assim lembrando por grande parte dos brasileiros.

O que chama atenção é que quem dirige ou escreve essas histórias na maioria das vezes não são negros, e a representatividade não existe nesses cargos, como também não existe em cena. Isso reflete nas temáticas, qualidade e respeito com os negros. Programas como o Esquenta, da Rede Globo, não contribuem em nada para mudar a imagem que já fizeram de nós: ou somos divertidos, sambistas e “mulatas exportações” ou somos os escravos das novelas de época que evoluíram para o papel da empregada tratada de forma ríspida. Todo o resto, infelizmente, ainda é exceção.

Ou seja, idealizam para os negros três vivências: uma é a do sofrimento, outra é a da alegria carnavalesca e a mais marcante é a do servo. Raramente uma realidade que pode envolver fatores plurais e inúmeras outras questões em um mesmo contexto, afinal assim é a vida. Parece óbvio o que vou dizer, mas nós, os negros, também somos pessoas.

A representatividade feita dessa forma “torta” não é uma soma, ela fortalece o preconceito e as suas bases. Além de contribuir para que a sociedade continue acreditando no mito da democracia racial e a do negro como temática, que vai desde trabalhos de Iniciação Cientifica até a nova produção Global, mas que não corresponde à realidade justa.

Precisamos entender que não se trata de clarear as ideias e sim simplesmente enegrecê-las, da direção ao papel principal.

Fonte: Confeitaria

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