Feminismo asiático: mulheres amarelas lutam contra a erotização e o racismo 

“O feminismo asiático se tornou um espaço de identificação e acolhimento. Além das pautas feministas, como empoderamento e igualdade de gênero, buscamos incluir questões étnicas e raciais na discussão, para dar espaço às vivências das mulheres de origem asiática.”

A fala é da estudante Agnes Hikari Suguimoto, de 23 anos — como ela, outras mulheres descendentes de japoneses, chineses, coreanos, indianos, árabes e outros países da Ásia, estão se unindo para compartilhar e discutir experiências específicas que vivem no Brasil.

O coletivo Lótus Feminismo é provavelmente um dos primeiros grupos a fazer isso: nasceu em 2016, como um grupo no Facebook criado pela artista Caroline Ryca Lee, que entendeu que existia uma demanda por “acolhimento e reflexão sobre a noção de raça entre mulheres amarelas [termo que compreende o fenótipo de japoneses, chineses, coreanos]”.

A troca cresceu, se transformou em encontros presenciais e, no mesmo ano, passou a abarcar também mulheres marrons [descendentes da Índia e de países do Oriente Médio], com a chegada da produtora de audiovisual Juily Manghirmalani. Hoje, o grupo tem oito integrantes.

“O que nos une é essa vontade de transformar, fazer as pessoas perceberem que o Brasil é plural, com muitas camadas étnicas que precisam ser discutidas. E não havia abertura para esse diálogo. É um movimento muito recente, um bebê aprendendo a falar”, diz Juily. “Temos um intercâmbio cultural muito fraco com países asiáticos e pouco incentivo a conhecer essas culturas. Por isso, somos colocadas num lugar exótico, decorativo, ao invés de compreender que a sociedade é muito mais plural do que a gente pensa”.

Universa ouviu três mulheres que se sentem acolhidas por esse viés asiático do feminismo. Todas elas citam a luta contra estereótipos racistas, como a ideia de que a mulher asiática é submissa, e a falta de representatividade nas mídias — vale lembrar que a TV brasileira teve a primeira atriz de origem asiática protagonista de novela, Ana Hikari, há apenas dois anos. E falam da descoberta da ancestralidade e de preconceito.

“Ouvia que eu era muito bonita para ser japonesa”

Marian conheceu o feminismo de origem asiática em 2020 (Fonte: Arquivo Pessoal)

“O feminismo está na minha vida há muito tempo, mas esse viés de origem asiática é recente, do ano passado para cá. E tem feito eu questionar minha relação com a ancestralidade e descobrir que vivemos peculiaridades que devem ser consideradas.

A gente vive num mundo de padrões eurocêntricos de beleza, e as pessoas de origem asiática não são maioria no Brasil, então faltam exemplos de beleza em lugares de destaque. Isso faz com que essas pessoas não entendam sua beleza como aceitável e influencia nossa visão sobre nós mesmos.

Escutamos piadas desde a infância em relação ao formato dos olhos, das bochechas e de outras características físicas. Isso afeta homens e mulheres, mas sabemos que esses padrões estéticos são muito mais agressivos com as mulheres.

Quando era mais jovem, já me antecipava achando que os caras nunca iriam me achar bonita perto das minhas amigas e, muitas vezes, ouvia ‘você é muito bonita para ser japonesa’, como se fosse um elogio. Vivi complexada com características muito próprias das mulheres asiáticas, me sentindo fora do padrão. Por outro lado, quando a mulher asiática não é lida como menos bonita, ela é fetichizada.

Há pessoas que apreciam a beleza asiática, mas sob um ponto de vista totalmente equivocado. Já me deparei com homens que achavam que a mulher com ascendência japonesa seria submissa, meiga, falar baixo. Eu, que não correspondo a esse estereótipo, me sentia duplamente excluída: não faço parte de um padrão eurocêntrico e nem estou dentro do que as pessoas esperam de mulheres que têm a minha aparência.

Não tem como eu não me identificar como asiática sendo que, no meu caso, tenho os avós dos dois lados nascidos no Japão. Mas, até pouco tempo atrás, minha experiência foi de rejeição às minhas origens. Foi muito difícil me aceitar, me amar e entender que eu merecia respeito.

Situações racistas mais sutis, mas que reforçam estereótipos, são frequentes. Na época do cursinho tem aquela frase: ‘Mate um asiático e garanta sua vaga no vestibular’.

Fora gente passando cantada em aplicativo dizendo que adora as asiáticas porque são todas delicadas, educadas.” Marian Koshiba, de 31 anos, é artista e empresária.

“Sensação de não pertencimento e exotização dos nossos corpos”

Agnes conta que preconceito impactou sua autoestima (Foto: Arquivo Pessoal)

“Eu tive um longo caminho para construir a minha autoestima. Quando você é uma menina nipo-brasileira, fica entre dois mundos de padrões estéticos muito diferentes. E, infelizmente, você não consegue se encaixar em nenhum deles.

Entender minha ancestralidade e meus traços me fizeram perceber, por exemplo, que os tutoriais de maquiagem das revistas brasileiras jamais dariam certo para mim. Até mesmo as roupas não se encaixavam no meu corpo. Mas eu também não era magra e nem tinha a pele clara, como as atrizes e cantoras japonesas.

Por algum tempo, eu acabei desistindo de ser o que eu entendia por ‘bonita’. E isso só mudou quando tive meu primeiro contato com o feminismo.

Ser motivo de piadas e de chacotas foi bem comum na minha infância e adolescência, mas não me sentia no direito de reclamar, porque o sentimento anti-asiático é velado, geralmente disfarçado de humor. Eu me forçava a rir, porque não queria admitir que estava sendo alvo de piadas racistas.

Há um ano, saí de uma festa e fui comprar um lanche com meu namorado. Um moço sentado na mesa ao lado começou a falar ‘arigatô sayonara’ [expressão de despedida, em japonês] para mim. Pedimos para ele parar, mas isso só piorou os ataques. Eu fiquei tão frustrada por não me sentir confortável no meu próprio país, que comecei a chorar.

Por mais que tudo isso me incomodasse, eu só consegui erguer a minha voz e lutar contra esse tipo de atitude depois de entrar em contato com outros descendentes de asiáticos que moram no Brasil. Compartilhar essas experiências me fez perceber que não estava sozinha.

O feminismo de origem asiática me acolhe porque consigo compartilhar as minhas frustrações com outras mulheres que passam pelo mesmo que eu: sensação de não pertencimento, a fetichização, a injúria racial, a exotização dos nossos corpos e das nossas culturas. Tudo isso é mais fácil de identificar e combater quando temos apoio de outras mulheres que entendem nossa dor.

Quando eu era mais nova, me identificava mais como asiática do que como brasileira, porque todos me colocavam nessa caixinha. Mas por mais que tenha nascido no Japão, fui criada no Brasil. Não sei falar japonês, não sigo os costumes.

Por mais que meu fenótipo não negue a minha ancestralidade, que tenho muito orgulho de carregar, sou 100% brasileira, criada com arroz e feijão, como qualquer outra pessoa nascida aqui.” Agnes Hikari Suguimoto, de 23 anos, é estudante.

“Desconstruí ideias projetadas sobre meu corpo”

Lina Tag é multiartista e faz performances híbridas entre música, dança e interpretação (Foto: Arquivo Pessoal)

“Sou artista ‘amarele’ [Lina usa pronome neutro para algumas palavras], não sou acadêmica, professora e nem porta-voz, meu olhar para a discussão parte de um viés artístico. Sou um corpo brasileiro atravessado por uma racialização ‘amarela’. Não posso responder pelo feminismo de origem asiática porque é algo cheio de complexidades. Acredito que faz mais sentido pensar o tema de maneira coletiva, para evitar o apagamento de outras vozes.

Trocar experiências com outras pessoas de ascendência asiática, acompanhar seus processos e seus trabalhos artísticos foi e ainda é muito importante para mim. Apesar de não me parecer haver uma organização e articulação como um movimento, vejo nesses pequenos lugares de troca uma rede de apoio, um local de aprendizagem.

Sou nipo-descendente e minha relação com a cultura japonesa é de afeto e crítica. Tenho ainda na memória as vezes em que eu comia bentô [espécie de marmita japonesa] na rua com meu avô. Pratico rituais de culto aos ancestrais a partir de conhecimentos passados pela minha avó.

Conforme vou estudando e desenvolvendo meu trabalho artístico, aprimoro a relação com a ancestralidade, absorvendo aquilo que faz sentido para mim e desconstruindo ideias que foram projetadas sobre o meu corpo.

Meu primeiro trabalho que levantou essa questão foi a música ‘Amarela’, que fiz em 2017, aos 19 anos, depois de, como atriz, ter tido portas fechadas na minha cara pelo fato de ter um fenótipo amarelo. Lembro de ter me esforçado bastante para criar um material legal como atriz e nem se deram ao trabalho de ver meu portfólio. Disseram que o meu ‘tipo oriental’ não tinha valor no mercado de trabalho.

Comecei a compor ‘Amarela’ nesse mesmo dia e, dois anos depois, a lancei como manifesto. Esse trabalho foi meu primeiro contato com questões asiáticas-brasileiras. Hoje, pesquiso e trabalho com performances híbridas entre música, dança e interpretação, inspiradas no butô. E, em breve, lançarei uma música que fiz para meu avô, que terá uma performance que representa uma conversa entre duas gerações amarelas distintas.” Lina Tag, de 24 anos, é multiartista.

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