Notícia sem contexto contribui para o genocídio negro no Brasil, afirma pesquisadora

Enviado por / FonteFolha de São Paulo

Como parte dos projetos especiais dos 100 anos da Folha, o jornal convidou 13 integrantes de grupos sub-representados no jornalismo profissional praticado no Brasil. Eles expõem episódios de preconceito e desinformação, além de problemas na relação com jornalistas e na forma como a imprensa noticia —ou não noticia— questões que os afetam direta ou indiretamente.

Batizada de “E Eu? – O Jornalismo Precisa me Ouvir”, a série é formada por vídeos e depoimentos em forma de texto.

Cientista social e pesquisadora, com uma tese sobre memória e escrita de mulheres negras, Bianca Santana, 36, fala sobre a representação das pessoas negras na imprensa. Ela é autora do livro “Quando Me Descobri Negra” e colunista da revista Gama. Leia entrevista ou assista ao vídeo (há uma versão com recursos de acessibilidade logo abaixo).

VERSÃO COM RECURSOS DE ACESSIBILIDADE

Na infância, além dos gibis da Turma da Mônica, eu gostava de ler a Veja. Minha mãe era assinante da revista, a única dentre os moradores dos 40 apartamentos do prédio da Cohab onde vivíamos. Perto dos 10 anos de idade, lendo a Vejinha de cabo a rabo, eu já percebia uma ausência. Nada sobre a Vila Sabrina, o Parque Edu Chaves ou a Vila Medeiros aparecia na revista. O Mocotó ainda era o bar do seu Zé, sem Rodrigo [Oliveira] como chef, sem fila na porta, mas já com o caldo famoso na região. Ali entendi que a São Paulo do jornalismo impresso ia de Santana ao Campo Belo, da Mooca a Pinheiros.

Ainda assim, fazia sentido ler sobre aquela cidade que não era a minha, assim como era prazeroso acessar a literatura infantil europeia. O jornalismo, assim como os livros, tratava de realidades distantes que me interessavam.

Comecei a assinar a Folha quando entrei no curso de jornalismo. O trajeto do Jardim Brasil até a Paulista demorava tempo o bastante para ler o jornal todo, excluindo classificados, economia e esportes. Eu já circulava parcialmente pela cidade retratada no jornal, me beneficiava de muitas das atividades gratuitas divulgadas nele, e tudo ia bem nos primeiros anos da graduação.

Mas no terceiro ano, quando fui morar sozinha, comecei a fazer terapia, já conhecia o movimento negro e entendi, finalmente, que era negra, o jornal foi ficando esquisito. Ele não deveria tratar de uma realidade distante, afinal. Mas não tinha gente preta. Nem parda. Não tinha a cidade onde eu nasci e onde vivia minha família. Não havia notícias da minha antiga vizinhança. Não tinha a minha perspectiva.

“Minha” como “nossa”. Primeira pessoa do plural.

Quando eu lia sobre um homem negro assassinado, mesmo que a maior parte dos assassinatos de homens ou mulheres negras nunca tenham sido notícia, pensava na família desse homem. Eu ainda não sabia que essa forma de noticiar, sem contexto, contribuía para a continuidade do genocídio negro no Brasil, como o movimento negro denuncia há décadas, e como a Folha contribui até hoje. Eu pensava que muitos deles tinham mãe, namorada, esposa. Filha.

O jornal foi ficando esquisito. Ele não deveria tratar de uma realidade distante, afinal. Mas não tinha gente preta. Nem parda

Bianca Santana
Jornalista, cientista social e pesquisadora

Meu pai morreu com um tiro na cabeça em 1996, um mês antes de eu completar 12 anos. A versão oficial é de suicídio, mas a história é toda complicada. Ele saíra do jogo do bicho um ano antes, e todo mundo dizia que ninguém sai do jogo do bicho. Estava com a mão direita machucada, praticamente inutilizada, e o tiro foi do lado direito. A polícia não investigou. Depois de 15 dias de internação no Hospital do Mandaqui ele morreu por traumatismo craniano. A dor da minha avó não saiu no jornal. Nem a minha.

Deixei de assinar a Folha. Era muito dinheiro pra mim, que trabalhava na faculdade e dava aulas de inglês nos finais de semana, para tão pouco retorno. Se na infância era divertido descobrir um mundo distante na revista, a jovem adulta interessada em entender o Brasil não via mais sentido em assinar o jornal.

Quando fui editora-discente da Esquinas, revista laboratório da Faculdade Cásper Líbero, cobrimos o Mensalão conversando com quem trabalhava no entorno do circo da CPI; narramos histórias de pessoas desabrigadas pelo Katrina, aproveitando que uma estudante fazia intercâmbio no Texas; mostramos as contas de quem vivia na cidade recebendo um salário mínimo. Éramos jovens, o Brasil estava mudando e podíamos produzir o que precisava estar no jornal. No TCC [Trabalho de Conclusão de Curso], fiz um livro reportagem sobre as pessoas desabrigadas pela barragem de Sobradinho. A história que a história não conta.

Um mês de experiência na revista Viagem e Turismo, com o bônus de reportar o que era necessário para levar seu cachorrinho para a Europa, foi suficiente para não querer ter todas as horas de trabalho preenchidas pelo jornalismo —parcial, arrogante, fútil e racista, para ficar em apenas quatro qualidades. Livros e projetos de educação coexistiram primeiro com um blog independente, o Jornalismo de Guerrilha, depois, com o blog Pé de Manga, no portal Planeta Sustentável; depois, com o Huffpost Brasil, a revista Cult e, agora, com a revista Gama e o Ecoa, do UOL.

Em 2014, no bojo das incertezas e percepções de crise de 2013, abriu-se a possibilidade de alguém com a minha história e perspectiva dar aulas na Faculdade Cásper Líbero. Primeiro, eu ensinava sobre tecnologias digitais. Depois, técnicas de reportagem. E então me tornei editora-docente da Esquinas. Em 2016, depois de uma capa belíssima sobre estudantes secundaristas, contando da ocupação de escolas e do Centro Paula Souza em protesto contra o anúncio do fechamento de escolas, cortes de verba e a máfia das merendas, ouvi do diretor da faculdade que aquilo era militância, e não jornalismo. “Não é porque a Folha não noticia que não é jornalismo”, respondi a ele antes de sair da sala, decidida a pedir demissão.

Bianca Santana
Jornalista, cientista social e pesquisadora, é autora de ‘Quando Me Descobri Negra’ e colunista da revista Gama

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