Rap: reocupando um lugar que sempre foi nosso

O mês de maio ficou marcado pelo clipe do Childish Gambino (eu não conhecia esse alter ego do Donald Glover), cheio de referências, fotografia impecável, direção incrível e mais um monte de coisa que eu passaria o dia escrevendo.

Por Valéria Andrade enviado para o Portal Geledés

As cenas do clipe chocam bastante e dizem sobre o racismo nos Estados Unidos, sobre violência policial, morte do povo negro e isso você não precisa ser nenhum gênio para entender, basta ser preto/preta mesmo ( é óbvio que existem detalhes que pessoas mais observadoras e entendidas da cultura afroamericana captaram melhor).

É incrível como a distância geográfica e algumas mudanças na História não separam os pretos e pretas daqui dos de lá, nós nos entendemos bem até mesmo sem entender o idioma e querem saber o motivo? É música de preto, feita por preto e para os pretos. Ponto.

Eu percebo nos últimos anos os negros voltando para o rap, isso mesmo: voltando.

Passamos anos tendo o nosso espaço roubado por rappers brancos, era só colocar na MTV para ver . Os poucos pretos que apareciam cantavam sobre mulheres, sexo e grana. Ficamos tempos presos num espaço que nós mesmos criamos (já que falávamos sempre do mesmo tema), porque a indústria deu um jeito de embranquecer e diminuir a nossa presença. O que a gente precisa entender aqui, é que não basta ter preto/preta no rap, precisa ter preto/preta falando sobre como é viver a sua negritude e suas diversas facetas, só que isso incomoda de um jeito os racistas…

O rap que falava sobre a nossa existência preta ficou preso no gueto durante anos, vez ou outra alguém conseguia sair dali, tipo Racionais e uma pequena parcela de grupos. Isso sem falar que ficamos congelados, pois demorou em sair uma galera do gueto, só puxar aí na memória como era ali no começo dos anos 2000 até uns tempos para cá. Demorou muito para aparecer um Djonga da vida mandando um “fogo nos racistas” no meio da música. Também não posso esquecer de citar que a internet facilitou e abriu algumas portas no meio.

Mulher preta no rap então? Meu Deus! Era tão difícil que só fui conhecer depois da internet, lá em 2008. Infelizmente ainda caminha bem devagarzinho essa parte, mas hoje em dia temos muito mais representantes do que antes e com bastante relevância. Isso sem falar que homossexuais, pessoas trans e demais grupos, ainda têm uma luta gigante pela frente.

No Lollapalooza do ano passado a confusão foi geral, porque a organização do evento chamou o grupo de rap Haikaiss e mais um rapper, todos brancos. O debate sobre apropriação cultural veio com tudo, os rapazes do grupo pareciam não querer entender que tinha uma pitada de racismo nisso. Já em 2018, a organização chamou Rincon Sapiência, que discursou sobre racismo, falou sobre a morte da Marielle, trouxe toda a estética negra para o palco, entendem a importância?

Claro que a indústria entendeu a importância também, assim como as marcas de roupa, bebida e etc, porém, ainda estamos ocupando esses lugares e conversando com o nosso povo muitas vezes. O que importa aqui é os racistas tendo que engolir pessoas pretas em todos os lugares, falando sobre racismo, gerando debate e invertendo tudo de errado que nos foi ensinado durante anos.

Estamos numa época de celebração ao nosso povo, mesmo que as circunstâncias muitas vezes não sejam favoráveis, mesmo que morram muitos de nós todos os dias e a luta seja diária e intensa. Quando eu falo celebração, não estou falando só de “oba oba”, falo sobre qualquer preto/preta dizendo coisas que a gente entende , porque não tem nada melhor do que saber que existem outras pessoas no mundo iguais a você. Hoje é o rap que está fazendo isso, mas amanhã retomaremos outros meios e a tendência é cada dia a coisa ficar mais preta ainda.


** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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