Filmes atuais analisam a afirmação da identidade negra

Djon África e A última abolição são exemplos de filmes que discutem a identidade racial

Por Ricardo Daehn Do Correio Brasiliense 

Djon África: estreitamento de laços entre Brasil e Portugal (foto: Terratreme Filmes/Divulgação)

Logo na primeira cena da produção do filme Djon África, recém-lançado na cidade, o protagonista deixa o público inteirado do tema central, com a letra de uma música: “Toda a gente precisa de origem para ter uma missão”.

É justamente atrás da curiosidade pela árvore genealógica — eternamente renegada — que Miguel (personagem de Miguel Moreira) chegará à realidade de Cabo Verde, buscando o encontro com o pai, um completo desconhecido. Claro que, no trajeto, vai esbarrar na dureza de um cotidiano embrutecido, também descrito na música de protesto que abre a fita: “O governo come e bebe até a última gota, e o povo vota — você dá o corpo ao trabalho para poder receber algum dinheiro…”.

Primeiro longa de ficção assinado pela dupla de portugueses Felipa Reis e João Miller Guerra, Djon África testou algumas certezas do realizador João, entre as quais a de que “dinheiro, quando aparece, estraga tudo”.

Foi justamente um malabarismo financeiro, que mobilizou equipes brasileiras, portuguesas e cabo-verdianas, o elemento capaz de garantir a boa difusão para o longa feito com atores não profissionais. “Precisava de pessoas motivadas, numa relação que vai para além de recebimento de dinheiro. Cinema estimula a partilha.

Tínhamos quatro linhas de frente filmando em Cabo Verde. Trabalhamos com quem aceitou jornadas sem grandes intervalos de descanso. Tudo possibilitou a grande aventura, inesquecível e coletiva, por quatro meses”, comenta o realizador.

“Em Cabo Verde, a identidade cultural negra é muito forte, ainda que a população viva uma grande diáspora — quem sai, propaga a cultura, pela Europa. Por meio da música e da língua, os cabo-verdianos seguem firmes”, opina o diretor João Miller Guerra.

Versado em pintura e artes plásticas, ele (ao lado da companheira e correalizadora Felipa Reis), defende com o filme a “questão universal” centrada na busca de uma vida experimentada na plenitude. Tibars, outro codinome do protagonista de Djon África, no roteiro proposto por Pedro Pinho, explora a vivência da imigração, quando deixa Portugal, em busca de um pai do qual sequer guarda uma imagem.

“Acho que a cultura negra, de raiz, se propaga, primeiramente, por meio dos próprios negros. Ela resiste e existe muito vincada nas comunidades. Em Portugal, ela existe muito nos bairros cabo-verdianos, em que já trabalhamos há alguns anos e, no meio dessas comunidades, a gente constata grandes diferenças, a reboque das transformações repassadas pela Europa”, analisa o diretor.

Fronteiras, problemas de “uma globalização malfeita ou mesmo impossível” espalha, segundo João, questões acima de nacionalismo e de quebras de paradigmas. “Em Portugal, as comunidades negras mantêm sua raiz viva. Estão nos bairros e continuam nas periferias, longe do centro, e guetizadas. Mas, ainda assim se propagam”, comenta o cineasta.

Djon África baliza um estreitamento de laços entre Portugal e Brasil, por meio de coprodução com a Desvia (produtora de Recife), que tem na cartela produções de peso como os longas Boi neon e Ventos de agosto, criados por Rachel Ellis e Gabriel Mascaro.

Exibido no Festival de Cinema de Roterdã (Países Baixos) e premiado pela imprensa especializada no Festival Internacional de Cinema do Uruguai, Djon África obteve boa circulação por países como Reino Unido, Alemanha, Dinamarca, Suécia e Canadá. A aceitação não reverteu em certeza de êxito, entretanto — mesmo diante de tantos festejos cercando traços culturais e raciais.

“Indiferente à cor dos protagonistas; distribuir um filme, escoar um filme, é difícil e ponto. Há, cada vez mais, plataformas paralelas ao cinema. Estrear os filmes depois de passados em festivais é bem difícil. Na Europa, e particularmente em Portugal, a coisa está bem, bem difícil. É um orgulho enorme ter um filme como este, mas temos dificuldades de estreia em Portugal, dada as poucas salas de cinema”, conclui.

Injetando verdades

Filmado em centros como São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, o documentário A última abolição, dirigido por Alice Gomes e com supervisão do politizado e ativista Jeferson De, examina causas e efeitos da injeção de um contingente de 5,8 milhões de africanos escravizados ao longo de 350 anos de história brasileira.

Coproduzido pela Globo Filmes, e com estreia marcada para a próxima quinta-feira, A última abolição teve respaldo de mais de 10 anos de pesquisas realizadas pela consultora Luciana Barreto.

Greves, análises de quilombos, exames do extermínio de jovens negros, a chegada dos navios negreiros e a condição do negro formam o campo de discussão da fita. Representantes da Comissão Nacional Verdade da Escravidão e do Instituto da Mulher Negra figuram como entrevistados, ao lado de professores, sociólogos, filósofos e mestre em direito.

De Brasília, a professora Ana Flávia Magalhães Pinto dá o seu depoimento como integrante do Departamento de História da UnB.

Duas perguntas/ Alice Gomes

Quais as questões mais imediatas e que raramente têm acolhimento, na visão de um artista negro?

A construção do imaginário de um povo, de uma nação, se faz com narrativas. Quanto mais diverso for o acesso a histórias com protagonismo negro, feminino ou LGBT, mais diversa e generosa será nossa sociedade.

Os meios de produção artísticos acompanham o perfil de privilégios historicamente construídos sendo dominados por homens brancos, colocar na produção os artistas negros, as mulheres e os artistas LGBTs são essenciais para democratizar a construção de uma visão plural.

Isso não quer dizer que o artista negro só pode falar de assuntos relacionados ao preconceito racial ou a mulher sobre o machismo, e assim por diante.

Todos podemos e devemos falar de todos os assuntos, gerar empatia, se colocar no lugar do outro e estimular o público a também fazer isso. Quando o exercício em lutar pela visão do outro é realmente sincero, todos saímos ganhando.

Que conclusões tirou ao estar no projeto do documentário?

O mito da democracia racial, de que no Brasil não temos preconceito racial, que aqui teríamos uma espécie de “preconceito social”, ainda vigora em nossa sociedade e isso é muito nocivo para a população negra, dificultando o debate verdadeiro sobre o combate ao preconceito racial.

O preconceito racial é estruturante da sociedade brasileira, temos que enxergar nossa sociedade como ela realmente é: excludente, desigual e falsamente cordial. Não basta não sermos racistas, temos que ser anti-racistas e combater o preconceito unidos. A igualdade racial tem de ser uma batalha de todos, brancos e negros. Os negros serão sempre os protagonistas dessa luta, mas juntos seremos sempre mais fortes.

 

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