Filmes brasileiros esquecidos para pensar racismo e a abolição

Logo no início de “Compasso de espera” (1973), filme de Antunes Filho, o personagem Jorge (Zózimo Bulbul) diz que “o 13 de maio não libertou o negro no Brasil, libertou a consciência do branco”. 13 de maio, Abolição da Escravatura, é uma data confusa. O que fazer com ela? Celebrar? Como comemorar que um mal que durou mais de três séculos no Brasil tenha sido legalmente proibido, enquanto seus efeitos sobre a sociedade brasileira e o câncer do racismo persistem?

Por André de Paula Eduardo , do Vista Minha Pele

Episódios recentes, como uma marcha contra imigrantes em São Paulo, a prisão de um rapaz negro por portar desinfetante (!), ou a polêmica sobre um restaurante com o nome de “Senzala” evidenciam que não há nada a ser celebrado. Sem falar nos futebolistas a declarar apoio ao nazi-doidivanas que comparou quilombolas a gado, ou no deputado parvalhão que defende abertamente o fim do salário para o trabalhador rural – noutras palavras, o retorno da escravidão.

Se consideramos o impacto da escravidão na alma do país, sua presença no cinema de ficção pode ser considerada pequena, e em boa parte, um tanto esquecível. Cacá Diegues adaptou a obra de João Felício dos Santos em três longas, “Ganga Zumba” (1964), “Xica da Silva” (1976) e “Quilombo” (1984), filmes nos quais a resistência dita o tom. Nelson Pereira dos Santos não ficou atrás com clássicos que refletem os problemas da população afrodescendente, como “Rio Zona Norte” (1957), “O amuleto de Ogum” (1974) e “Tenda dos milagres” (1977).

Há outros momentos importantes, como “Bahia de todos os Santos” (1960), de Trigueirinho Neto, obra fundamental sobre a opressão e necessidade de resistir. Outros, como o açucarado “Sinhá Moça” (1953) de Tom Payne, em que brancos bons vencem brancos maus e negros assistem. Mas interessa nessas linhas, sobretudo, recordar três obras que merecem alguma revisão, seja pela ousadia do tema, pelo contexto ou por suas qualidades estéticas, caso do incrivelmente esquecido “Compasso de espera”, e dos não tão mais lembrados “Pureza proibida” (1974) e de “Na boca do mundo” (1978).

Presença de Zózimo

zózimo e reneé em compasso

Antunes Filho começou a filmar “Compasso de espera” em 1969, embora ele só tenha sido lançado anos depois. É um registro extremamente singular, original e ousado, além de atual, e infelizmente único longa realizado pelo notório diretor teatral. Aqui, o foco está num homem negro bem-sucedido, de classe média, Jorge (Zózimo Bulbul). Desde o começo, a discussão sobre o preconceito racial se dá com franqueza, pois Jorge é um permanente estranho no ninho, negro num país em que o sucesso não cabe a eles. “Tem alma de ariano”, diz uma colega de Jorge a um empresário alemão, para o tranquilizar (o empresário responde dizendo que tem “uma escurinha por fora do casamento”, e faz piadas com judeus).

Jorge vive com Ema (Elida Palmer), mais velha, mas logo se vê num romance com Cristina (Reneé de Vielmond). A mãe de Ema, ao vê-la com Jorge (sempre elegante, bem vestido), apenas diz: “agora é com negros? nunca imaginei que chegasse tão baixo”. A posição social do protagonista é sempre um problema: estando com Ema, é como se fosse um “gigolô”, um oportunista. Ao rever a família, de origem pobre, a irmã (Léa Garcia) o acusa de ter vergonha da família. E sua relação com Cristina, aos olhos da sociedade, é simplesmente inaceitável. Ao tentar se hospedar num hotel, exigem-lhe certidão de casamento para provar que são cônjuges. E ao se beijarem na praia, são agredidos, pois “moça branca direita não anda com preto”.

Ao final, uma personagem alourada se interessará por Jorge, mas tal qual uma aventura exótica com um “selvagem”. Andrea Ormond ressalta a precisão na escolha de Bulbul para o papel, pois sendo ele próprio um negro bem-sucedido, ele próprio conviveu toda vida com o preconceito, sempre com dificuldades para adentrar o próprio prédio em que morava em Ipanema.

O plot de “Pureza proibida”, dirigido por Alfredo Sternheim, tem suas semelhanças com o filme de Antunes Filho, a começar pela presença do mesmo ator, Zózimo Bulbul, como um pescador. Uma freira (Rossana Guessa) e o pescador, após vários reveses, se apaixonam e se aceitam. Para as demais freiras, é o anticristo; quanto aos que julgam o pescador, é um crime da pior qualidade: se “engraçar” com moça que, além de freira, é branca. Interessante que o próprio diretor, em entrevista, diz que escolheu Bulbul como ator por considerá-lo um homem bonito, e não para colocar em primeiro plano a questão racial. E ao comentar o fracasso do filme, sobretudo nas regiões sudeste e sul do Brasil, conclui o quanto somos um país racista.

Antônio Pitanga, diretor

Sibele Rúbia, Antônio Pitanga e Norma Bengell em “Na boca do mundo”

“Na boca do mundo” é o único longa-metragem realizado por Antônio Pitanga, que co-protagoniza o filme com Norma Bengell. Argumento de Pitanga com Cacá Diegues, roteiro de Leopoldo Serrán, e com Jorge Durán como assistente. Assim como em “Compasso de espera” e “Pureza proibida”, há um romance entre uma senhora branca, Clarisse (Norma) e Antônio, pescador e frentista. Mas Antônio é noivo da ambiciosa Terezinha (Sibele Rúbia). Entre indas e vindas desse triângulo, impressiona a constante insegurança de Antônio, acostumado ao racismo: “não ande comigo, que as pessoas comentam”, alertando a moça rica e branca da desgraça do “falatório” que poderia acometê-la.

Ao mesmo tempo, Clarisse parece querer entregar-se de corpo e alma, e responde positivamente à difícil questão de Antônio, “seria capaz de ter um filho meu”? No entanto, pelo desfecho trágico, parece que aqui, como em “As pontes de Madison” (de Clint Eastwood) ou “Um dia muito especial” (de Ettore Scola), o provincianismo vence. Filme que, assim como “Compasso de espera”, poderia se aparentar de “Ali: fear eats the soul”, de Rainer Fassbinder, feito do choque de mundos diferentes, de estranhamento e da obrigação de enfrentar barreiras, ou ser por elas esmagado.

Menção honrosa

Aguinaldo Camargo e Grande Otelo em “Também somos irmãos”.

Os três filmes merecem, no mínimo, uma revisão carinhosa, mas não estão sozinhos. Outro que merece uma lembrança é “Também somos irmãos” (1949), de José Carlos Burle, curiosíssima e dissonante produção da Atlântica com Grande Otelo a tratar do tema do racismo e colocar negros como protagonistas. O ator não poderia ser mais significativo: Otelo, como um Cruz e Sousa ou Lima Barreto, passou maus bocados na vida, e boa parte deles por sua cor. E sentenciaria em entrevista famosa, muito depois, que neste país o negro precisa se esforçar duplamente para concorrer com os demais. Sua sentença parece, infelizmente, longe de superada.

André de Paula Eduardo é jornalista, formado na Unesp, onde fez mestrado em Comunicação. Pesquisa cinema brasileiro, torce pro Santos e é apaixonado por Brahms e Pink Floyd. Colunista e colaborador da Revista Prosa Verso e Arte.

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