Fim da licença do Estado para matar

Projeto de Lei, que poderá ser votado nesta quarta-feira, 10 de dezembro, propõe o fim dos autos de resistência e estabelece novos parâmetros de investigação para mortes causadas pela polícia

por Maria Carolina Trevisan e Preto Brasileiro na Ponte

A Constituição brasileira não admite a pena de morte. Mas, na prática, ela ocorre. Na forma de “autos de resistência” é promovida pelo Estado, aceita pela sociedade e permanece impune. De acordo com a 8a edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, nos últimos cinco anos, os policiais brasileiros mataram 11.197 pessoas, uma média de seis por dia. É mais do que a polícia dos Estados Unidos matou em 30 anos. Os homicídios de dois jovens negros pela polícia americana justificaram mudanças efetivas de fiscalização da ação policial, como o uso obrigatório de câmeras nas fardas, e levaram milhares de pessoas às ruas para protestar. A taxa de letalidade da polícia brasileira é grave mesmo se comparada à de países conflagrados, como o México, a Venezuela e a África do Sul.

Uma maneira de frear esse tipo de conduta é a aprovação do Projeto de Lei 4471/12, de autoria dos deputados Paulo Teixeira (PT), Fábio Trad (PMDB), Delegado Protógenes (PCdoB) e Miro Teixeira (PROS). Ele propõe o fim dos chamados “autos de resistência” (registro comum para quando, após matar civis, a Polícia Militar alega legítima defesa) e estabelece novos parâmetros para a investigação dessas mortes como o acompanhamento do Ministério Público e da Defensoria, a preservação do local do crime, além de minuciosa documentação da perícia.

Atualmente esses aspectos não estão previstos no Código de Processo Penal e os crimes registrados como “autos de resistência” sequer são investigados.  É sob essa “justificativa” que se escondem as execuções sumárias praticadas pela polícia. “É uma ação policial quase que aceita pela sociedade”, explica o deputado federal Paulo Teixeira. “Estamos querendo colocar a polícia brasileira na legalidade.”

O PL 4471/12 tem o apoio de organismos como Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), Defensoria Pública do Estado de São Paulo, Associação de Juízes pela Democracia, Instituto Sou da Paz, Conectas, Justiça Global e IBCCrim, que expediram notas técnicas baseando suas justificativas. Também a Ponte apoia essa causa.

Se a pressão da sociedade funcionar, o projeto de lei deve ser votado nesta quarta-feira, 10/12, Dia Internacional dos Direitos Humanos. A Câmara dos Deputados é majoritariamente a favor do PL4471, com apoio das bancadas do PT, PMDB, PSDB e PPS.

A principal mudança está no artigo 292 do Código de Processo Penal.

O texto atual prevê que “se houver, ainda que por parte de terceiros, resistência à prisão em flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência, do que tudo se lavrará auto subscrito também por duas testemunhas.

A nova proposta modifica o texto anterior e afirma:

“Se houver, ainda que por parte de terceiros, resistência à captura em flagrante, ou ao cumprimento de ordem judicial, o executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar moderadamente dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência.
§ 1 Se do emprego da força resultar ofensa à integridade corporal ou à vida do resistente, a autoridade policial competente deverá instaurar imediatamente inquérito para apurar esse fato, sem prejuízo de eventual prisão em flagrante.
§ 2 Da instauração do inquérito policial de que trata o parágrafo anterior será feita imediata comunicação ao Ministério Público e à Defensoria Pública, sem prejuízo do posterior envio de cópia do feito ao órgão correcional correspondente e, onde houver, à Ouvidoria, ou órgão de atribuições análogas.”

 Além desses pontos, a nova lei modifica a forma como é feita a perícia:Obriga-se o uso de fotografia, desenhos e esquemas, enquanto antes apenas permitia-se o uso “quando possível”; veda-se o acompanhamento de pessoas estranhas ao corpo técnico e pericial; a autópsia passa a permitir acompanhamento por pessoa indicada pela família da vítima; estabelece-se um prazo de 10 dias para a entrega do laudo pericial em caso de morte provocada por agente do Estado;

Veja a seguir a entrevista com o deputado federal Paulo Teixeira, em que ele explica a importância da aprovação desse projeto de lei. Para conhecer a íntegra da entrevista, leia o texto abaixo.

 

Ponte – O que propõe o projeto de lei 4471, de 2012?
Paulo Teixeira – Nós queremos disciplinar uma investigação de um procedimento policial chamado “auto de resistência”. Esse procedimento começou no Brasil durante o regime militar. Quando o policial mata uma pessoa, registra como tendo havido “resistência”. Diante de uma resistência que poderia matar o policial, ele se antecipa e acaba levando a vítima à morte. Inicialmente nós temos que pensar que a abordagem policial tem que ser o menos letal possível. É necessário um treinamento para o policial para que, em sua abordagem, ele possa dominar a pessoa sem levá-la à morte. Quando você tem que “neutralizar” uma pessoa, se a situação requer que o policial atire, ele tem que atirar em áreas não letais. Mas o fato é que no Brasil você tem um grande número de autos de resistência e um grande número de vítimas, portanto, as abordagens têm sido muito letais. Os estudos estão demonstrando que nos autos de resistência muitas vítimas não resistiram à abordagem e mesmo assim morreram. Morreram por mera execução e não por resistir à abordagem. O que nós estamos querendo é investigar os chamados autos de resistência para ver se aquela abordagem foi necessária ou não foi necessária. Evidentemente que se um policial foi atacado e ele reagiu, aquilo foi uma abordagem necessária, estava no cumprimento do dever legal, em legítima defesa e, portanto, se utilizou daquele meio como auto defesa. Mas temos que investigar também aquelas hipóteses em que o policial não foi atacado mas cometeu o homicídio, utilizando-se desse instrumento para registrar um crime que ele praticou, o que é inadmissível, um servidor público praticar um crime contra o cidadão.

Ponte – O senhor conhece outros exemplos de mudanças como a que este projeto de lei propõe? Que transformações provocaram? 
Paulo Teixeira – Os autos de resistência têm protegido uma ação policial que no Brasil está sendo quase que aceita pela sociedade. Nos Estados Unidos, agora, um jovem negro foi morto pela polícia porque tinha um revólver de brinquedo e aquilo levantou a sociedade americana. Exigiu que o próprio Presidente da República, Barack Obama, lançasse um pacote de treinamento para as polícias e dentro desse pacote um mecanismo de registro da ação policial que eu acho que é um aspecto que nós temos que evoluir no Brasil: você tem que colocar uma câmera na farda do policial registrando aquela abordagem. Nos Estados Unidos, a abordagem violenta e ilegal é bem minoritária. Mas é muito alta no nosso país. Aqui nós perdemos cinco jovens por dia. Cinco jovens negros e pobres. O que demonstra haver, em certos segmentos da polícia, valores racistas, que presumem que o jovem negro e de periferia seja um bandido. Então nós queremos mudar a cultura no Brasil. Nós queremos uma cultura de respeito ao policial, de entender que ele está em uma função pública, que é uma autoridade pública, que ele não pode sofrer ataque, que ele precisa ser protegido. Mas também uma cultura de respeito ao cidadão comum. Há uma tragédia no Brasil, na minha opinião. O número de mortos é muito alto. Nós não podemos admitir uma morte sequer. Menos ainda cinco por dia, duas mil por ano.

Ponte – Como as vítimas de violência policial e seus familiares são tratados atualmente no Brasil?

Paulo Teixeira – Há uma segunda tragédia: muitas famílias perdem seus filhos vitimados por uma abordagem policial daquele policial que está fora da lei e esses policiais, além de matarem, cometem uma segunda violência contra a vítima, criminalizam a vítima e passam para a imprensa que aquele jovem era um bandido. Então a família, além de sofrer a perda do filho, sofre por uma ação do Estado e ainda uma calúnia sobre a vítima, que criminaliza a vítima. É uma das questões da tragédia brasileira que a gente quer mudar. Por isso que a gente quer aprovar o PL4471.

Ponte – Não seria papel da imprensa também se responsabilizar por sua cobertura quando ela escuta a autoridade policial como sendo uma verdade única?

Paulo Teixeira – Tem uma música do Chico Buarque que diz “a dor da gente não sai no jornal”. A dor dessas mães acaba não saindo no jornal. O que sai no jornal é o ataque desferido contra a vítima. Eu vi um caso de uma mãe no Rio de Janeiro que relatou como seu filho foi vítima do policial; ela relatou também como ela tomou conhecimento da morte do filho pela imprensa e como fez para apurar, punir o policial e limpar o nome do filho, que tinha sido criminalizado pela imprensa. A imprensa precisa tomar cuidado com isso. Ela ouve a versão da polícia e leva adiante essa versão. Como temos uma sociedade em que muitas pessoas não tem acesso ainda à Justiça, a pessoa mal consegue apurar a morte do filho e menos ainda responsabilizar a policia. Mas é um fato que nós precisamos abrir os olhos da imprensa brasileira.

Ponte – Em São Paulo já existe uma norma que muda o nome dos autos de resistência e impede que a polícia socorra as vítimas. Mas isso mudou pouca coisa. O que houve?

Paulo Teixeira – O que aconteceu em São Paulo é que o secretário de Segurança Pública, o [Fernando] Grella, determinou que os policiais não poderiam mais mexer na cena do crime e que portanto eles não poderiam mais prestar socorro. O resultado imediato foi uma diminuição no número de mortes praticadas por policiais. Depois, voltou a crescer. Mas demonstrou que aquele procedimento de “socorro” que os policiais prestavam normalmente era um atendimento para acobertar uma execução. Há uma cena muito conhecida no Brasil, quando chega uma viatura policial em alta velocidade prestando socorro a um jovem que fora atingido por uma bala de um policial e esse jovem chega morto ao hospital. Então, muitas vezes também, a execução se dá dentro da viatura policial. Aqui em São Paulo o secretário já identificou essa prática e já tomou providência. Mas essa prática voltou a acontecer, a polícia voltou a matar mais. O que nós precisamos é a aprovação de uma lei nacional que estabeleça um procedimento de investigação no Código de Processo Penal. Inclusive a gente acaba com esse nome “auto de resistência” e passa a dizer que foi uma morte em virtude da ação de um agente público. A diferença do PL 4471 para a norma de São Paulo é que a nova lei é federal e amplia a investigação, garante o controle externo da investigação e exige uma documentação muito aprofundada da perícia, além de impedir essa “prestação de socorro” à vítima porque é nesse estágio que acontece o homicídio, como notamos em São Paulo.

Ponte – Qual é a importância, para a população negra em especial, que esse projeto de lei seja aprovado?

Paulo Teixeira – Grande parte dos jovens negros e pobres é que são vítimas dessas abordagens violentas da polícia. Essa abordagem é uma licença para matar. Uma aplicação da pena de morte no nosso país. Nós não temos pena de morte, a Constituição não admite pena de morte mas ela ocorre de fato, praticada pelo Estado. Muitas vezes, um dos argumentos para matar é a existência de antecedentes criminais, se o jovem já respondeu a algum tipo de crime, se foi preso com uma quantidade de maconha, se foi preso por um furto, etc. O policial, tomando conhecimento da existência de antecedentes criminais, pratica o crime. Isso em serviço e fora de serviço. O que nós temos no Brasil hoje é a prática da pena de morte. Nós temos que reconhecer que o Brasil pratica a pena de morte. O povo brasileiro é contra a pena de morte e nós temos que impedir essa prática. Uma das formas de impedir, na minha opinião, é aprovando o PL 4471. E outra: nós precisamos treinar melhor as nossas polícias. Nós jogamos muito peso na segurança pública, nas polícias repressivas, nós teríamos que jogar mais peso na polícia investigativa para desarticular o crime organizado, aquele que pratica crime continuado, que vive disso. Temos que aparelhar mais as polícias civis, treinar melhor os policiais, integrar mais as polícias estaduais entre si e o mesmo com a Polícia Federal. Ao mesmo tempo, temos que desarticular a produção do crime a partir dos presídios. Isso se dá por você selecionar melhor quem tem que ser preso. Hoje muita gente está sendo presa, gente que não deveria estar lá e acaba sendo cooptada para a prática de crimes continuados. Então, nós temos que adotar as medidas alternativas à prisão, temos uma lei nova de medidas cautelares, por exemplo, a tornozeleira eletrônica. Tem muita gente que está presa que não deveria estar presa. Precisamos conscientizar a sociedade que essa pessoa que está presa indevidamente pode ser cooptada pelo crime. Uma série de medidas: treinamento, equipar a polícia, integrar as polícias e mexer no sistema penitenciário. Em relação às polícias repressivas, às Polícias Militares, nós temos que melhorar o seu treinamento, temos que ter um nível de controle da atividade policial maior, inclusive preservando os bons policiais e excluindo os maus policiais das corporações brasileiras.

Ponte – O que falta para aprovar o projeto de lei?

Paulo Teixeira – Nós estamos tentando aprovar na Câmara agora, depois precisa ir para o Senado e então voltar para a Câmara. Vamos fazer uma tentativa de aprovar na próxima quarta-feira, 10 de dezembro, que é o dia Internacional dos Direitos Humanos. Para isso estamos pedindo para a sociedade brasileira se pronunciar. Tem uma enquete no site da Câmara e a população brasileira pode se pronunciar também por meio do Facebook e Twitter dos líderes e seus emails. Seria uma contribuição da sociedade para aprovar esse projeto.

Ponte – Se esse projeto passar para votação apenas no ano que vem, com a nova constituição da Câmara dos Deputados que terá mais policiais como deputados, ficará mais difícil aprovar o projeto?

Paulo Teixeira – Ficará mais difícil porque aumentará a bancada de policiais, que resistem a qualquer controle, que professam aquela “ideia” que bandido bom é bandido morto. E por trás dessa “ideia” há toda uma ilegalidade da atividade policial, isto é, admite a pena de morte, admite a ilegalidade, admite e presume que todos sejam bandidos. Eles passarão a ter maior voz na próxima legislatura na Câmara Federal. Por isso esperamos aprovar este ano.

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