Flagelo presidencial

Ninguém resolve um problema negando a sua existência. Desde as primeiras mortes causadas pela Covid-19 no Brasil, há exatamente um ano, o presidente se negou a reconhecer as ameaças do novo vírus e a necessidade imperativa de colocar em prática um plano nacional de combate à pandemia.

Pior do que isso, ao longo deste flagelo o presidente não perdeu uma oportunidade para conspirar contra a saúde e a vida dos brasileiros. Promoveu aglomerações, atacou as medidas de distanciamento social, ridicularizou o uso de máscaras e incitou a população a agir contra as medidas preventivas propostas pela comunidade científica e determinadas por diversos prefeitos e governadores dotados de algum senso ético ou, ao menos, de responsabilidade política.

Em vez de se dedicar à aquisição e produção de vacinas em número suficiente para atender a população brasileira, empenhou-se na produção e distribuição de medicamentos sem qualquer comprovação científica, além de insultar países e produtores que se encontravam em posição de cooperar com o Brasil.

As vidas perdidas, os sacrifícios impostos aos profissionais sanitários, o colapso do sistema de saúde, as mortes por asfixia —por simples incompetência logística na provisão de oxigênio— ou nas filas das UTIs não foram capazes, no entanto, de alterar a postura presidencial e daqueles civis e militares que o adulam, demonstrando que o Brasil se encontra cativo de um governante sem nenhuma capacidade de empatia em relação ao sofrimento humano.

Apesar de medidas relevantes tomadas pelo Congresso, pelo Supremo Tribunal Federal e por diversos governadores e prefeitos, o governo federal não foi capaz de coordenar os esforços nacionais necessários para reverter a expansão da pandemia. Os interesses políticos mais mesquinhos e obscuros do presidente prevaleceram sobre o bem-estar da nação. O alegado objetivo de salvar primeiro a economia, como previsto, não passou de uma falácia teórica e prática.

Após 365 dias de uma pandemia que já causou a morte de mais de 270 mil brasileiros, não seria injusto afirmar que o vírus da Covid-19 encontrou no presidente um forte aliado. A sociedade brasileira não pode mais ficar refém de tamanha insensatez.

Nesse contexto dramático, em que o Brasil passou a gerar o maior número mundial de mortes diárias em função da Covid-19, duas iniciativas merecem atenção. A primeira delas, impulsionada pela Coalizão Negra por Direitos, em associação com diversas outras organizações, é a criação de uma “comissão popular de inquérito”, voltada a suprir a omissão do parlamento, documentando medidas e omissões do governo, com vistas à responsabilização política e jurídica daqueles que têm causado tantos danos ao povo brasileiro.

Na área política, ganhou peso a frente pela vida, formada por 23 governadores. Esse esforço pode se converter numa espécie de “consórcio emergencial”, destinado a desenhar e implementar um plano nacional de combate à pandemia, ocupando o espaço vazio deixado pelo governo federal. Afinal, no campo das competências comuns e concorrentes estabelecidas pela Constituição, no qual se inclui a defesa da saúde, a omissão da União não pode paralisar os demais entes federados.

Ao Congresso cumprirá prover os meios, inclusive financeiros, para que esse consórcio possa colocar em prática um programa extenso e emergencial de vacinação, caso não queira se tornar cúmplice da catástrofe humanitária a que está submetida a população brasileira.

Oscar Vilhena Vieira
Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP

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