Flávia Martins de Carvalho: Negras e Negros no Poder Judiciário

Como produto do GT, em 2021, foi realizada pesquisa sobre Negras e Negros no Poder Judiciário, cujo resultado deve ser lido considerando que, em 2015, o CNJ publicou a Resolução nº 203, que dispõe sobre a reserva a pessoas negras, no âmbito do Poder Judiciário, de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento dos cargos efetivos do quadro de pessoal dos órgãos do Poder Judiciário e de ingresso na magistratura.

Segundo a pesquisa, de 89 tribunais respondentes, 33 declararam ainda não terem implementado a referida Resolução, a maioria (29 tribunais) em virtude da não realização de concursos públicos no período.

Dentre os 56 tribunais que já adotaram a Resolução, 13 (24,52%) indicaram dificuldades para o seu cumprimento, que vão desde a ausência de critérios objetivos para verificação de quem faz jus às cotas raciais, passando pelas impugnações ao edital ou a alguma fase do concurso, até a inadequação dos sistemas internos para lidar com informações de raça.

Dos 38 tribunais que adotaram a comissão de heteroidentificação como um dos instrumentos para verificação da elegibilidade às cotas raciais, 18 declararam que os membros da comissão não participaram de qualquer oficina envolvendo a temática racial e 4 disseram sequer ter pessoas pretas ou pardas nas suas comissões. Em contrapartida, 18 tribunais declararam que a comissão foi formada por especialistas na temática da igualdade racial e enfrentamento ao racismo, dos quais 13 declararam que esses(as) profissionais participaram de oficinas específicas sobre o tema.

Aqui, é importante compreender as particularidades do racismo no Brasil. De acordo com Lélia Gonzalez, o racismo brasileiro configura-se como racismo por “denegação”, categoria freudiana que explica o “processo pelo qual o indivíduo, embora formulando um dos seus desejos, pensamentos ou sentimentos, até aí recalcado, continua a defender-se dele, negando que lhe pertença” (GONZALEZ, 2018; pág. 321-322). 

O racismo por denegação costuma aparecer nas pesquisas sobre a existência do racismo no Brasil. Pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva, em parceria com o Carrefour, no período de 21 e 22 de março de 2021, revelou que 84% das pessoas entrevistadas consideram o Brasil um país preconceituoso em relação a pessoas negras, mas apenas 4% admitem ter preconceito em relação a essas mesmas pessoas.

Voltando à Resolução CNJ nº 203/2013, a expectativa era de que, em cinco anos, todos os ramos da justiça brasileira já teriam atingido pouco mais de 20% de magistradas e magistrados negros em seus quadros.

A realidade, porém, se mostrou diferente. Em 2018, segundo o Perfil Sociodemográfico da Magistratura, o percentual de pessoas negras na magistratura era de 18,1%, sendo 16,5% pardos e 1,6% pretos. 

Realizada nova projeção, em 2020, verificou-se que, somente no ano de 2044, todos os ramos da justiça teriam atingido o parâmetro de inclusão de 22,2% de pessoas negras na magistratura, o que subsidiou a criação do GT para tratar de questões raciais no âmbito do Poder Judiciário, indicando a necessidade de uma nova pesquisa que abordasse de forma mais detalhada as questões raciais no âmbito do Judiciário.

O resultado dessa nova pesquisa, apresentado em setembro de 2021, evidenciou uma distância ainda maior entre expectativa e realidade do que aquela mapeada em 2018, quando da realização do Perfil Sociodemográfico dos Magistrados. Isto porque, em 2021, apenas 12,8% da magistratura brasileira é negra; sendo 85,9%, branca; 1,2%, amarela; e 0,1%, indígena. Segundo relatório da pesquisa, não foi possível identificar os percentuais de pretos e pardos, pois “vários órgãos não souberam separar a raça preta de parda, categorizando-as como negras, ocasionando perda de dados”.

Embora existam limitações metodológicas para projeções de longo prazo, a pesquisa indica, ainda, que somente entre 2057 e 2059, todos os ramos do Poder Judiciário contarão com pelo menos 22,2% de pessoas negras em seu quadro de magistrados e magistradas.

Atualmente, sou uma das 587 juízas negras em um universo de 11.947 juízes(as), desembargadores(as) e ministros(as) com raça identificada pelos tribunais que compõem o Judiciário brasileiro, o que equivale a 4,91%. Registre-se que, no total, a magistratura conta com 17.553 integrantes, mas nem todos possuem raça identificada, sendo 6.897 (39,29%), do gênero feminino; 10.651 (60,67%), do gênero masculino; e 5 (0,02%), sem gênero informado.

No tribunal onde atuo, sou uma das 23 juízas negras entre os(as) 2.582 integrantes que o compõem. Ou seja, estou entre as 0,89% de mulheres negras que fazem parte da magistratura do maior tribunal do mundo em volume de processos, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), que não conta com uma única mulher negra em seu quadro de 33 desembargadoras e de 19 juízas substitutas em 2º grau (aquelas que estão mais próximas de ocupar o cargo de desembargadora por critério de antiguidade). No total, o TJSP possui 928 (35,94%) mulheres; e 1654 (64,05%) homens.

E o que isso significa?

Bem, inicialmente, significa que, no caso do TJSP, se nada for feito, ainda vai demorar muito para termos uma mulher negra ocupando a cadeira de desembargadora, o que pode ser acelerado caso uma mulher negra ingresse pelo quinto constitucional. E embora eu esteja tratando dos números do Tribunal ao qual pertenço, não é diferente em outros tribunais, nem mesmo nos Tribunais Superiores, onde o cenário é também bastante excludente. E pode-se dizer que a história se repete em todo o sistema de justiça.

O Censo Racial de Membros do Ministério Público de São Paulo (MPSP), realizado em 2015, indicou que 4% dos membros do MPSP são negros(as), o que equivale a 56 pessoas em um universo de 1.493 membros, sendo 64% homens e 36% mulheres. Há 8 mulheres negras promotoras de justiça no MPSP, ou seja, 0,5%. De igual forma, Censo realizado pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DPESP), em 2018, indicou que 8% de seus defensores e defensoras se autodeclararam negros(as).

Ao dar visibilidade ao problema do racismo no âmbito do Poder Judiciário, pergunto-me com alguma frequência: quem se importa?

Quando cheguei nesse espaço de poder, em 2018, achei que poucos(as) se importavam, mas, com o tempo, fui conhecendo caminhos, pessoas, grupos, associações e percebi que não era bem assim.

O grupo que compõe o Encontro Nacional de Juízas e Juízes Negros (ENAJUN), criado em 2017, representou um verdadeiro “aquilombamento” da magistratura negra; um ponto de fortalecimento através da partilha de experiências comuns nos desafios enfrentados por corpos subalternizados que ocupam espaços de poder no Judiciário. 

Desde 2020, o ENAJUN passou a organizar também o Encontro Nacional de Juízas e Juízes contra o Racismo e Todas as Formas de Discriminação (FONAJURD), que conta com a participação da magistratura não negra, pois há muitos(as) juízes(as) não negros(as) verdadeiramente comprometidos(as) com a luta antirracista dentro do Judiciário e que têm se tornado cada vez mais próximos(as) e necessários(as) nessa luta, que não é apenas das pessoas negras, mas de toda a sociedade.

De 25 a 28 de outubro, serão realizados de forma conjunta o V ENAJUN e o II FONAJURD, eventos gratuitos,virtuais e cujas inscrições podem ser feitas no link. Trata-se de um importante evento não apenas para a magistratura negra, mas aberto a todas as pessoas que tenham interesse em participar da luta antirracista e do combate a todas as formas de racismo e discriminação. Sintam-se convidados(as)!

Nos vemos lá!

Nota 1: A pesquisa sobre Negras e Negros no Poder Judiciário está disponível no link.

Nota 2: O texto aqui apresentado é uma versão resumida do artigo “Mulheres negras no Poder Judiciário”, no prelo.

Flávia Martins de Carvalho é juíza de direito no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, doutoranda em Filosofia e Teoria do Direito pela USP e Diretora de Promoção da Igualdade Racial da Associação dos Magistrados (e Magistradas) Brasileiros (AMB).

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