Violência Racial e Policial

Fogo Cruzado: em 6 anos, mil pessoas foram atingidas por balas perdidas, 229 morreram; ‘Infelizmente está longe de acabar’, diz mãe de Ágatha Félix

“Infelizmente, esse número é muito maior e, ao meu ver, está longe de acabar. Enquanto tivermos essas políticas públicas de governo, mais e mais pessoas morrerão dessa forma no Rio”. O desabafo é da assistente operacional Vanessa Francisco Sales, mãe da pequena Ágatha Vitória Félixmorta por uma bala perdida, em 2019, no Complexo do Alemão, Zona Norte do Rio de Janeiro. A menina, de 8 anos, estava dentro de uma Kombi com Vanessa, quando foi baleada nas costas durante um suposto confronto da Polícia Militar com traficantes da região.

Ágatha Félix é uma das 1.000 vítimas de balas perdidas nos últimos seis anos no estado do Rio, segundo um relatório da plataforma Fogo Cruzado (veja aqui), divulgado nesta terça-feira (10).

Essas pessoas foram vítimas das mais diferentes formas. Indo para o trabalho ou trabalhando, a caminho da escola ou em unidade educacional, em postos de saúde ou simplesmente caminhando pelas ruas.

São Ágathas, Rebeccas, Emilys, Kathlens Romeu…Pessoas que perderam a vida ou ficaram com alguma sequela por conta de disparos causados por armas de fogo.

Entre as 1.000 vítimas, 229 morreram e 771 ficaram feridas. Somente em 2022 foram 20 mortos e 62 feridos. Os dados da plataforma foram computados entre julho de 2016 a novembro de 2022.

Segundo o Fogo Cruzado, o pior ano da série histórica foi em 2018, quando 252 pessoas foram vítimas de balas perdidas: 47 mortas e 205 feridas. Naquele ano, a Região Metropolitana do Rio vivia o período de Intervenção Federal na segurança pública do estado, que durou 10 meses.

Dos 1.000 baleados, 624 foram atingidos na presença policial. Desse total, 162 deles não resistiram e morreram. Foi o caso de Ágatha Félix – testemunhas da ocorrência dizem que não havia confronto quando ela foi atingida.

Maria Isabel Couto, diretora de Dados e Transparência do Fogo Cruzado, comentou sobre o elevado número de vítimas nas ações policiais, principalmente em favelas.

“As ações e operações obedecem a uma lógica de conflito. As polícias não estão preparadas para evitar conflitos e isso se reflete no número elevado de vítimas de balas perdidas. Foram nove meses sem um plano de redução da letalidade policial desde que o STF determinou a elaboração de um projeto que visasse a redução de mortes pelos agentes do Estado. Esse é um passo importante para que a população do Rio de Janeiro deixe de viver à mercê de tiroteios que trazem traumas e afetam a rotina”, avalia.

“Eu falo isso de coração partido. Mas, infelizmente, isso não vai acabar. A polícia do Rio de Janeiro precisa de mais preparo”, desabafa Vanessa Francisco Sales.

Assim como Ágatha Félix, Emily Victoria da Silva, de 4 anos, e Rebecca Beatriz Rodrigues Santos, de 7 anos, foram baleadas e morreram enquanto brincavam na porta de casa, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. O caso aconteceu em dezembro de 2020. No dia, a PM diz que havia uma operação na região e que foi atacada. Familiares das meninas sempre desmentiram essa versão.

Emilly e Rebeca foram assassinadas enquanto brincavam na porta de casa, em Duque de Caxias (Foto: Reprodução)

“Enquanto tivermos políticas de governo como a atual, haverá sempre confronto, trocas de tiros e as pessoas serão mortas por balas perdidas. Além disso, as polícias do Rio não respeitam, principalmente, quem mora em comunidade. É só ver a quantidade de pessoas mortas por balas perdidas nas operações. Eles sempre chegam atirando a esmo, vitimando inocentes”, conta a dona de casa Lídia da Silva Moreira Santos, avó de Rebecca e tia-avó de Emily.

Medo de ser vítima de bala perdida

Ainda segundo a pesquisa do Fogo Cruzado, na cidade do Rio de Janeiro, 80% dos moradores dizem ter medo de serem vítimas de balas perdidas e 59% declararam que se mudariam da cidade caso fosse possível, revelou pesquisa do Datafolha divulgada em 2022.

Na Região Metropolitana a violência está em todos os lugares e faz com que nem o próprio lar seja um lugar seguro. 108 pessoas foram vítimas de balas perdidas quando estavam dentro de casa (33 morreram e 75 ficaram feridas). Outras 25 pessoas foram atingidas quando se divertiam em bares (cinco mortos e 20 feridos).

O relatório do Fogo Cruzado destaca ainda que, transitar pela Região Metropolitana também fez com que 18 pessoas fossem baleadas dentro de transportes públicos (uma morta e 17 feridas).

Os adultos, que percorrem diariamente pelas cidades são os mais afetados e representam 688 baleados entre as 1.000 vítimas: 137 foram mortos e 551 ficaram feridos.

A população idosa, com idade a partir de 60 anos, representou 119 das vítimas de balas perdidas: 77 morreram.

Motorista e cobradora de ônibus ficaram feridos por balas perdidas em tiroteio no RJ (Foto: TV Globo)

Entre a população com idade inferior a 18 anos, 87 crianças e 92 adolescentes sofreram com as balas perdidas. Desse número, 21 crianças e 27 adolescentes não resistiram aos tiros e morreram.

Houve ainda quem nem chegasse a conhecer o mundo: três bebês foram baleados quando ainda estavam na barriga da mãe: somente um sobreviveu. E 10 gestantes foram atingidas por balas perdidas: duas morreram e oito ficaram feridas.

Motorista é atingido por bala perdida em rodovia de São Gonçalo, RJ (Foto: Reprodução/redes sociais)

O advogado Rodrigo Mondego, da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ, comentou a pesquisa do Instituto Fogo Cruzado.

“Ao invés de criar políticas públicas para coibir e responsabilizar as pessoas que ferem e matam através de balas perdidas, o Governo do Rio promove políticas públicas que geram ainda mais dor e sofrimento através dessas mesmas balas perdidas, principalmente com suas operações policiais de alta letalidade”.

O g1 procurou o Governo do Estado e as polícias Militar Civil.

O governo disse que, “de acordo com o Instituto de Segurança Pública (ISP), os crimes contra a vida – incluindo morte por intervenção de agente do estado – apresentaram redução no acumulado de janeiro a novembro de 2022 em comparação ao mesmo período de 2021. Segundo o comunicado, “essas reduções são resultado do investimento que o Governo do Estado do Rio vem fazendo em tecnologiatreinamento e melhoria nas condições de trabalho para as forças de segurança e no trabalho integrado das polícias Civil e Militar”.

A PM disse que a corporação disse que “não comenta dados não oficiais”. A Civil não respondeu aos questionamentos da reportagem.

Geledés Instituto da Mulher Negra

Share
Published by
Geledés Instituto da Mulher Negra

Recent Posts

Programa Raízes abre inscrições para qualificação profissional

Estão abertas as inscrições para o curso gratuito de qualificação profissional em assistente de serviços…

3 horas ago

O que emergirá do tribalismo do ressentimento?

O ressentimento tem encontrado terras férteis em ambientes marcados por mobilidade social limitada, disputas por…

1 dia ago

Enem 2025: prazo para pagamento da inscrição é ampliado até 27 de junho

Quem ainda não pagou a taxa de inscrição do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem)…

1 dia ago

‘O samba está de luto’: as homenagens de artistas e políticos a Bira Presidente

A morte de Bira Presidente, na noite deste sábado (14), aos 88 anos, causou comoção no…

2 dias ago

Bancos passam a oferecer Pix Automático a partir desta segunda

Com a promessa de substituir o débito automático e os boletos, o Pix automático entra…

2 dias ago

Organização do acervo de Abdias Nascimento está disponível ao público

O cotidiano da preservação do acervo do poeta, dramaturgo, artista plástico e ativista pan-africano Abdias Nascimento poderá…

2 dias ago