Formada para covid: médica negra relata dor e racismo no 1° ano da carreira

Enviado por / FonteUOL, por Carlos Madeiro

Aos 24 anos, a médica Rayane Matos só conheceu a profissão pelo contato diário no combate à covid-19.

Ela teve a formatura antecipada pela UPE (Universidade de Pernambuco) para ajudar na força-tarefa contra a doença, em abril de 2020. Mas já sente o cansaço e o desgaste causados pela pandemia. “Cada plantão é o pior”, diz.

Além da sobrecarga física, ainda tem a questão emocional, em especial nas más notícias. Comunicar a morte de uma pessoa querida para a família é devastador.
Rayane Matos, médica recém-formada em Pernambuco

Não bastasse isso, a profissional negra e de aparência jovem perdeu as contas de atos de preconceito implícito, como os pacientes que a veem e pedem para que se “chame a médica”.

Marcou negativamente um episódio que ela esperava por meses: o dia da vacinação.

“Durante o preenchimento do cartão, depois de entregar a identidade, a todos se perguntava a função no hospital. Eu estava fardada, com o estetoscópio pendurado, e a responsável nem me perguntou, já foi escrevendo ‘técnica'”, conta. Leia a seguir seu relato ao UOL.

“Cada plantão é o pior plantão até agora”

“Em abril, completo um ano de formada —formatura essa antecipada por causa da pandemia. Atualmente, trabalho numa UTI covid em uma emergência geral e como plantonista de intercorrência numa enfermaria contra covid.

Percebo que, além da mudança do perfil de paciente, cada vez mais jovem, há também uma mudança na doença, se manifestando de formas mais graves com maior frequência e com evoluções bem rápidas.

Cada plantão parece ter sido ‘o pior plantão até agora’. Além da sobrecarga física, ainda tem a questão emocional, em especial nas más notícias. Comunicar a morte de uma pessoa querida para a família é devastador.

Por várias vezes, fui responsabilizada em questões acima do que eu poderia intervir. Tem o atraso na procura da unidade de saúde, a dificuldade de transferência para um leito adequado (seja enfermaria ou UTI), as próprias fragilidades da saúde da pessoa, anteriores ao adoecimento atual.

Tudo isso influencia na evolução da doença, mas, na hora do desfecho final negativo, toda a responsabilidade é projetada na gente.

É preciso ter tudo isso muito bem trabalhado na mente para não se deixar consumir pela situação. Já cheguei a trabalhar por quase dois meses todos os dias, só parava em casa para dormir. Hoje eu não aguento mais.

“Todo mundo esgotado”

É extremamente frustrante ver o sistema de saúde em colapso e ver que estamos todos no limite.

Não é apenas uma questão logística. É também pessoal. Eu vejo o mesmo desgaste em mim e em toda a equipe. Médicos, técnicos, enfermeiros e fisioterapeutas, nós temos sido monotemáticos nas conversas ao longo dos plantões: está todo mundo esgotado.

Se não reconhecermos o nosso limite, ninguém vai passar a mão e dizer: ‘Você fez sua parte, pode descansar agora’.

Todo dia recebo mensagens de unidades precisando de médicos e tenho que ser realista comigo mesma: no momento que eu der ainda mais de mim, não terei como dar meu máximo em todos os plantões que já assumi.
Rayane Matos, médica recém-formada em Pernambuco

O que tem me ajudado muito é conversar abertamente sobre isso com os colegas de trabalho e perceber que não sou a única à beira da síndrome de burnout.

Ninguém quer o título de herói. Não quando entra em jogo a nossa saúde física e mental.

É extremamente comum ver pessoas circulando sem máscara, num contexto onde não temos nem insumo nem data pra uma vacinação em massa, nem mesmo a possibilidade de um auxílio coerente com as necessidades de uma família para que as pessoas possam ficar em casa.

É cada vez mais difícil ser otimista nesse cenário.

O preconceito de cada dia

Já passei por fatos ligados a preconceito várias vezes. O dia em que fui me vacinar contra a covid me marcou bastante. Depois de entregar a identidade, a todos se perguntava a função no hospital. Eu estava fardada, com o estetoscópio pendurado, e a responsável nem me perguntou, já foi escrevendo ‘técnica’.

É como se na minha idade, com a minha cor só existisse um lugar para eu ocupar.

Outra vez foi um representante de cursos de atualização e pós-graduação mostrar o catálogo no plantão. Abriu no capítulo de enfermagem e colocou na minha frente. Eu pedi licença e fui folhear para procurar os de medicina, e ele não pensou duas vezes antes de dizer: “Para você só tenho esses”.

São vários episódios pequenos, sabe?! Os pacientes várias vezes mandam eu chamar o médico do plantão. Quando eu me identifico, fica aquele misto de surpresa/desconfiança.

No início tinha muito de eu não me sentir merecedora de exercer minha função. Juntava com a insegurança comum a todo recém-formado e alimentava a tão famosa ‘síndrome do impostor’.

Foi preciso muita terapia para eu internalizar a questão do racismo estrutural e diferenciar as situações. Hoje em dia isso me afeta menos, porque eu sei que é um problema da sociedade, não meu.”

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