Há tempos a cor da pele de Machado de Assis é tema controverso entre pesquisadores e biógrafos. Em seu atestado de óbito, o escrivão marcou que o autor, morto em 1908, seria de “cor branca” — uma prova, segundo muitos, de que o neto de escravos teria sofrido um processo de embranquecimento durante a vida, e mesmo após a morte. A querela ganhou um novo capítulo na semana passada, com o surgimento de uma foto até então desconhecida.
Encontrada pelo pesquisador Felipe Rissato em um exemplar da revista argentina “Caras y Caretas” de janeiro de 1908, a imagem mostra Machado de pé em um jardim, com a mão na cintura, num raro momento de informalidade.
‘Não há texto ou registro algum de Machado em que ele diz ser branco. Ainda assim, por causa do nosso racismo institucional, a elite sempre fez de tudo para apresentá-lo como tal. Esse é um debate que ainda vai durar por muitas gerações’ – Eduardo de Assis Duarte Pesquisador
Mas o que mais chamou a atenção foi a fisionomia: nunca antes os traços africanos do Bruxo de Cosme Velho teriam ficado tão evidentes. Uma observação que circulou entre especialistas, mas também nas redes sociais e em fóruns de mensagens.
— Machado aparece com traços nitidamente negros nesta foto, muito mais do que na maioria de seus retratos — avalia o pesquisador Eduardo de Assis Duarte, coordenador do Literafro, portal da literatura afro-brasileira da Universidade Federal de Minas Gerais, e autor do livro “Machado de Assis, afrodescendente”.
Duarte destaca que o “racismo institucional” do Brasil levou a essa tentativa de enbranquecimento de Machado de Assis, e acredita que esse debate ainda “vai durar por muitas gerações.
— Não há texto ou registro algum de Machado em que ele diz ser branco. Ainda assim, por causa do nosso racismo institucional, a elite sempre fez de tudo para apresentá-lo como tal. Esse é um debate que ainda vai durar por muitas gerações, e por isso fotos como essa são importantes para desmontar o embranquecimento do escritor.
VIOLÊNCIA RACIAL
Para Duarte, a imagem vem se somar a outro registro revelador, publicado pela primeira vez na década de 1950 por Raimundo Magalhães Jr. em seu livro “Machado de Assis desconhecido”. Trata-se de um retrato de perfil tirado pelos irmãos Bernardelli, supostamente “sem retoques”, e com um Machado mais negro do que de costume.
‘‘É uma indicação de que as fotos de Machado costumavam ser retocadas no Brasil. Não é uma coincidência que a foto em que ele aparece mais negro tenha sido publicada na Argentina’– Eduardo de Assis Duarte Pesquisador
Segundo Magalhães Jr., a imagem serviu de modelo a um desenho de bico de pena e guache, em que o escritor aparece com as feições branqueadas. Da mesma forma, o Machado dos retratos mais conhecidos, como os de Insley Pacheco, passa por mulato, ou até branco.
— É uma indicação de que as fotos de Machado costumavam ser retocadas no Brasil — opina Duarte. — Não é uma coincidência que a foto em que ele aparece mais negro tenha sido publicada na Argentina.
Autor de “Machado”, romance que reconstrói os últimos anos do escritor, Silviano Santiago também acredita que o retrato da “Caras y Caretas” revela um Machado de pele mais escura. E lembra de como as fotos “portuguesas” do autor, que o retratam na juventude, abalaram algumas certezas da época.
— A matéria do embranquecimento de Machado já tem história — diz Santiago. — Na minha geração, a questão começa com o francês Jean-Michel Massa, autor de “A juventude de Machado” (1839-1870), quando vem pesquisar em fins dos anos 1950 na Biblioteca Nacional do Rio. Massa tinha descoberto em andanças por Portugal, e nos arquivos pessoais que consultou, fotos do jovem Machado. Não havia dúvida de que a pele do rapaz era bem escura. Mas isso causou frisson entre os velhos machadianos.
Os registros de Machado de Assis em diferentes tons
Máscara mortuária
Para muitos, a máscara mortuária do autor revela com nitidez traços africanos e contesta seu próprio certificado de óbito, que o classifica como “branco”. Modelada no mesmo dia de sua morte, ela está hoje no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Retrato dos Bernardelli
O escritor Rubens Magalhães Jr. revelou esta foto em 1957, quase 50 anos após a morte do Bruxo do Cosme Velho. Segundo ele, o que se vê é um Machado “sem retoques”, de pele mais escura. O retrato serviu de modelo para um desenho em que o autor aparece embranquecido.
Branco em comercial
Em 2011, a propaganda de um banco na televisão causou revolta na internet ao escalar um ator branco para interpretar Machado. Pressionada, a empresa tirou a peça do ar, pediu desculpas aos movimentos negros e fez uma nova versão com um ator negro.
A pedido do GLOBO, Joaquim Marçal, historiador da fotografia e curador do portal Brasilianas Fotográfica da Biblioteca Nacional, analisou a foto da “Caras y Caretas”. Para ele, as variações de luz e sombra prejudicam a avaliação da cor da pele (a mão direita do autor, por exemplo, está muito mais clara do que o seu rosto). Por outro lado, ele defende que as feições do rosto indicam um homem muito mais negro do que o dos retratos feitos por Pacheco. A maior diferença está no nariz: largo no primeiro, afinado no segundo. O que não significa, necessariamente, que tenha havido algum retoque.
‘‘Usando a luz, tudo é possível para um fotógrafo, inclusive afinar um nariz’– Joaquim Marçal Historiador’
— Usando a luz, tudo é possível para um fotógrafo, inclusive afinar um nariz — diz Marçal. — O retoque pode ter até acontecido, inclusive como um acordo tácito entre Machado e Pacheco, mas não há como saber ao certo.
O historiador, porém, lembra que a revista argentina usou uma técnica de impressão ainda precária na época, conhecida como “clichê reticulado”, que fragmentava a imagem em vários pontos, acarretando uma perda de qualidade.
— É uma descoberta sensacional, mas que chama para outro desafio: achar a foto original. Só assim poderemos fazer uma comparação adequada com outros retratos.
Autora de “A imprensa negra do século XIX” e professora da Universidade de Brasília, Ana Flávia Magalhães Pinto não acredita que o registro traga algo a mais do que já se via em outras imagens. Mas não tem dúvida de que ela reforça “o que o racismo brasileiro tentou negar por décadas”.
— O maior escritor da literatura brasileira era um homem negro — afirma. — Os esforços para encobrir esse fato demonstram como a violência racial tem organizado até mesmo as políticas de memória sobre a história do país e de sua gente. O embranquecimento de Machado é produto da apropriação da sua memória por parte de homens que o queriam branco, para legitimar um projeto de país em que pessoas negras seriam apenas resquícios de um passado que se queria esconder e quiça esquecer. Paralelamente a isso, houve que não se esqueceu dessa realidade, a exemplo dos jornalistas da imprensa negra paulista ao longo de todo o século XX.