Na esteira da pane no mercado de trabalho, da queda de renda das famílias, das dificuldades financeiras das empresas e da precipitada flexibilização do isolamento social nas principais metrópoles brasileiras, diminuiu o volume de doações que viabilizam ações humanitárias em favelas e periferias. Projetos de entrega de cestas básicas, kits de higiene, água potável e até de produção de máscaras de proteção individual (agora de uso obrigatório nas cidades) perceberam o freio na solidariedade, a partir do terceiro mês da crise decorrente da pandemia da Covid-19. É sinal preocupante, porque a vulnerabilidade das famílias que perderam trabalho, renda ou provedores segue imensa. E ainda não tem prazo para terminar.
Os principais coletivos de favelas do Rio de Janeiro que, na primeira hora da crise sanitária, se organizaram para socorrer os lares lançados subitamente à extrema pobreza notaram a partir de junho o encolhimento das doações. Aconteceu no Gabinete de Crise do Alemão, no Movimenta Caxias, no Fala Akari, na Frente CDD, no projeto Cidades Contra o Corona, na Redes da Maré. Não é incomum que campanhas de arrecadação percam fôlego à medida que o tempo passa. Eliana Sousa Silva, diretora da Redes da Maré, já viu acontecer em outras ocasiões: “O país não tem tradição de doações permanentes. Por isso, sempre soubemos que o fluxo iria diminuir e nos preparamos. O problema é que a vulnerabilidade explodiu e vai demorar a passar. A flexibilização agrava a situação, porque dá a falsa ideia de normalidade. Mas isso não é verdade. Há mais gente precisando de ajuda que no começo”.
A crise da Covid-19 se mostra diferente pela intensidade, pela quantidade de famílias necessitadas e, agora se sabe, pela duração. Ela vai exceder os três meses inicialmente previstos até mesmo pelo governo federal. Sob pressão da sociedade civil e do Congresso Nacional, o presidente Jair Bolsonaro já anunciou mais duas parcelas de R$ 600 de auxílio emergencial e estenderá por decreto o prazo dos acordos de suspensão de contrato de trabalho e redução de jornada e salário. As duas medidas, segundo o Ministério da Economia, preservaram mais de 12 milhões de vagas com carteira assinada, ainda que impondo queda nos rendimentos. Cerca de 65 milhões de brasileiros, incluindo os beneficiários do Bolsa Família, já receberam as primeiras parcelas do auxílio.
Muitas empresas e fundações privadas se planejaram para financiar ou doar alimentos, água e produtos de higiene e limpeza por dois ou três meses, a partir do início da crise. As organizações sociais estão agora num esforço para convencê-las a esticar a ajuda. Da mesma forma, famílias de classe média que repassaram recursos para ações humanitárias viram a renda encolher com a tragédia no mercado de trabalho e também interromperam ou reduziram os repasses. “Estamos com o mesmo fluxo de distribuição com as arrecadações que temos, mas o apoio não é o de antes. A tendência é que a gente diminua consideravelmente a atuação. A sensação é que a pandemia acabou”, desabafa Jota Marques, integrante da Frente CDD, da Cidade de Deus.
Na edição mais recente da Pnad Covid-19, referente à segunda semana de junho, o IBGE contabilizou 10,1 milhões de desempregados, 9,7 milhões de pessoas afastadas do trabalho sem remuneração, 30,2 milhões de ocupados que receberam menos que o normal. O rendimento médio caiu 18%. São informações que explicam, ao mesmo tempo, o arrefecimento das doações e o aumento da vulnerabilidade. Famílias que nunca precisaram de cestas básicas tiveram de recorrer a ONGs. Foi gente que perdeu o emprego ou viu a renda desabar e, sem reservas financeiras, ficou sem ter o que comer. Eliana se lembra de um casal da Maré, ele funcionário no Aeroporto do Galeão, ela manicure, com duas filhas, uma no ensino médio, outra universitária: “Estamos atendendo a pessoas que nunca necessitaram de ajuda. E os que já eram vulneráveis estão em situação pior, porque as crianças perderam até a refeição servida nas escolas”.
Mais espantosa é a ausência do poder público. É evidente que o dinheiro do auxílio emergencial não cobre todas as despesas de uma casa, daí a necessidade de complementação com outros itens. Quanto menor o projeto social, maior a dificuldade. Na Redes da Maré, o primeiro mês da campanha de arrecadação rendeu 7.272 cestas de alimentos e 8.400 pratos de comida para moradores em situação de rua; o segundo, 15 mil e 10.500, respectivamente. Prevendo a queda, a ONG se preparou para garantir três meses de doações às famílias cadastradas. Agora, busca estender parcerias para prolongar a ajuda. O Cidade Contra o Corona arrecadou na primeira rodada R$ 65 mil; na segunda, R$ 24 mil. Por isso, a terceira fase da campanha foi cancelada. “Organizações financiadoras e doadores potenciais viram o auxílio emergencial como solução para os mais pobres. A retomada econômica sinaliza normalidade. A classe média empobreceu. E a ausência do Estado é a coisa mais trágica”, enumera a arquiteta e urbanista Tainá de Paula, responsável pela iniciativa.
A Central Única de Favelas (Cufa), articuladora de uma campanha nacional que já distribuiu R$ 113 milhões em cestas básicas e vales de R$ 120 a mães chefes de família, tem transferido donativos a outras instituições. A Ação da Cidadania começou a receber doações em março, beneficiada pelo redirecionamento de recursos de empresas para combate à fome. Durante a crise da Covid-19, já arrecadou mais de cinco mil toneladas e atendeu a quase dois milhões de pessoas nos 26 estados e no Distrito Federal. É cinco vezes mais que no último Natal Sem Fome, a campanha lançada em 1993 pelo sociólogo Herbert de Souza e reativada em 2017 após uma década suspensa, informa Daniel Souza, filho de Betinho, à frente da ONG. “Sabemos que tanto a pandemia quanto a fome vão piorar no segundo semestre e que 2021 será, em miséria e insegurança alimentar, muito mais grave que 2020. Enquanto estivermos recebendo doações, estaremos distribuindo. O medo é que a fome se naturalize, da mesma forma que as mortes pela Covid-19 estão se banalizando”. O risco é imenso.